14 de dezembro de 2013

Papiro do dia (421)

«Tocou o telefone. Na entrada do hotel já estavam à minha espera. Mas eu continuava a observar o rosto no espelho, como se estivesse a despedir-me de alguém. Era uma pessoa diferente… agora estava doente, mas não como tantas vezes antes, quando sentia cansaço ou fraqueza por causa das condições meteorológicas ou depois de algum excesso gastronómico. Estava doente de outra maneira: como se tivesse sido envenenado. A sensação mais profunda de todas as doenças graves é a de envenenamento; pelo menos alguém me dera essa explicação. Se calhar tinha bebido ou comido alguma coisa que me fizera mal. Que eu soubesse não. Este sintoma é característico não só das pessoas que têm a sensação de envenenamento, por terem comido algo estragado ou substâncias químicas, mas aplica-se também aos casos de pneumonia, ao cancro, a problemas cardíacos e outras doenças. O doente sente que está a sofrer uma alteração significativa. Lembrei-me de um cirurgião conhecido que, numa ocasião, me tinha dito que não prestava muita atenção a um paciente, apenas quando este lhe dizia com indiferença: “Doutor, não se passa nada comigo, só não me sinto bem.” Um bom médico consegue distinguir tão bem como um músico esse “não me sinto bem”, dito com sinceridade e ênfase, das queixas de um hipocondríaco que está a choramingar. Se for dito com angústia, vindo do profundo da alma, é um sintoma mais suspeitoso que qualquer outro, detetável pelas análises ou exames realizados com máquinas e substâncias químicas. Este sentimento profundo e elementar de estar envenenado projeta o fim.»
[Sándor Márai, A irmã; trad. Piroska Felkai, Dom Quixote, Novembro 2013;
pemetrexed carboplatina]

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