22 de fevereiro de 2014

15 de fevereiro de 2014

Breve interlúdio musical




(Papiro do dia (436)

" - Continuo a escrever?
Continue a viver, foi o que lhe apeteceu ter dito. Mas o que acabou por dizer foi:
- Isso é consigo, minha querida.Ainda era cedo quando ela se foi embora. Não lhe estava a apetecer voltar sozinho para a pequena casa, por isso deixou o livro e os apontamentos ao cuidado do empregado do hotel e foi dar um passeio junto ao rio, para montante. O carreiro levou-o para fora da cidade, e juntou-se à estrada que passava pela mina em actividade. O caminho tornou-se íngreme e pedregoso. Parou num cotovelo da estrada para descansar, olhar a cidade ao fundo, e  os picos das montanhas e a catarata ao alto.
A seus pés, os dentes-de-leão floriam em abundância, com pressa para depositar as suas sementes na estação curta. O ar cheirava a cera de abelha. Não sabia porquê. Cheirou as flores brancas de alguns arbustos, mas o seu perfume era outro.
Um colibri pairou sobre a sua cabeça, descreveu um triângulo no ar e afastou-se com um zumbido.
Ele prosseguiu, descansando a cada cotovelo. Perto da catarata, ouviu um ruído seco e um estrondo, e virou-se a tempo de ver rochas precipitarem-se pela face do penhasco. Seixo a pedra a calhau, as montanhas estavam a ruir. Sentou-se a ouvir a água e o vento enquanto as nuvens se acumularam. Grandes gotas de chuva caíram com brevidade, levadas no vento de maneira que ele podia vê-las cair até ao amontoado de pedregulhos lá em baixo, e subir na corrente de ar para um novo voo na sua direcção. Uma das gotas assentou-lhe na testa como um beijo.
No caminho de regresso, passou pelo cemitério. Fez os cálculos habituais junto às lápides. Mil oitocentos e oitenta e sete de 1916. Mil oitocentos e oitenta e sete de 1916. Mil oitocentos e setenta e nove de 1904. Mineiros que tinham morrido novos. Leu a inscrição de um monumento particularmente vistoso:

ERIGIDO PELO
SINDICATO DE MINEIROS 16 PARA 1
EM MEMÓRIA DE
JOHN BARTHELL
NASCIDO EM KOVJOKI WORA, FINLÂNDIA
FALECIDO EM SMUGGLER, COL.
13 DE JULHO DE 1901
AOS 27 ANOS DE IDADE

"No campo de batalha do mundo,
No bivaque desta vida,
Sê, não estulto gado apriscado,
Sê um herói na contenda!"

Pobre diabo, pensou ele, morrer numa mina e acabar enterrado à sombra de estrofes tão más. Riu-se, sentindo prazer no som das suas gargalhadas.
Chegado à cidade, tinha as pernas doridas e o sol tinha-se posto. Reouve o livro Rilke e parou depois na mercearia para comprar algo simples, algo que um poeta menor comesse. Feijões. Bolachas.
Enquanto os feijões aqueciam no fogão eléctrico, vasculhou o armário. Havia um elegante conjunto de fiança de produção industrial, mas ele encontrou o que procurava numa tigela feita à mão com o rebordo lascado. Segurou-a, sentindo nas suas mãos a forma das mãos que a moldaram.
Ao comer, pensou na escuridão húmida das minas. Pensou nos barrotes a estalar sob o peso da montanha. Buracos sem fundo que afinal terminavam. Desabamentos. Pó.
Era demasiado velho para morrer novo. Muito velho E também não achava que fosse conseguir escrever os seus dez versos de jeito. Sempre fora melhor a reconhecer o génio do que a expressá-lo.
Lavou a louça com água quente e passou-a na fria, sentindo nas mãos a diferença de temperatura. Despiu-se num dos quartos e foi então pôr-se diante do espelho da casa de banho. O seu corpo em nada se parecia com o tronco de Apolo no poema de Rilke. A sua pele branca estava flácida. As veias sobressaíam, azuladas, nos pulsos e nos tornozelos. Ao olhar para este corpo, outra pessoa teria desesperado. A pessoa que fora ontem, por exemplo."
[Bruce Holland Rogers, Pequenos mistérios; trad. Luís Rodrigues, Livros de Areia, Novembro 2007]

12 de fevereiro de 2014

Breve interlúdio musical




Às vezes, lá calha...

«O prazer é indissociável da luta, da tentativa de convencer o outro – e con-vencê-lo é a forma mental de o vencer.»
(Teolinda Gersão)

Papiro do dia (435)

«Partilhei contigo ideias que há muito me interessavam. Portugal viera de uma ditadura, tinha décadas de atraso em relação ao mundo. Muitas questões não tinham provavelmente resposta nem precisavam dela, porque eram estimulantes em si próprias.
Havia por exemplo esta pergunta: até que ponto a arte contemporânea conseguia impor-se por si mesma, como objecto plástico, ou precisava de palavras como suporte? Isto é, até que ponto a arte se convertera em pretexto para um exercício fascinante de hermenêutica, que de algum modo ocupava uma parte do seu espaço?
Era fácil dizer que a verdadeira obra plástica não precisava de palavras, que seriam sempre redundantes, porque o que nela havia de essencial não era verbalizável. Pertencia a outro campo, visual. Por isso era plástica.»
No entanto isto não era inteiramente verdade. Podíamos dizer que por vezes as artes plásticas valiam não tanto por si mesmas mas pelo que suscitavam, e só podiam ser traduzidas em palavras: curiosamente o que sobre elas se dizia e escrevia podia ser muito mais interessante do que elas mesmas. Tornavam-se de algum modo veículo para outra coisa, que ficava para além delas. “Vampirizavam” secretamente as palavras? Talvez, mas isso podia ser estimulante, um novo ponto de partida. E por outro lado também a literatura – o campo da palavra – se alargava e invadia outros domínios, procurava novas formas de se tornar visível, parecia já não lhe bastar o mundo confinado e silencioso do livro. Estava-se numa época de viragem, em que as formas se contaminavam e tudo era possível: outras maneiras de contar, mostrar, dar a ver, partilhar, experimentar, tornar visível. O leitor-espectador-visitante passava a ter um papel cada vez maior. Era levado a entrar nas obras, a circular por dentro delas, a perder-se e encontrar-se nelas.»
[Teolinda Gersão, A cidade de Ulisses; Sextante, 3.ª ed. Outubro 2012;


obra plástica]

10 de fevereiro de 2014

Breve interlúdio musical




Às vezes, lá calha...

Dedicou grande parte da leitura à literatura de viagem, até aportar – naturalmente – na arte do passeio.
A dimensão da doença: seis quilómetros de horizonte e ao longe a serra, entre o campo que vai dar ao mar e o fim breve.

9 de fevereiro de 2014

Nem sempre a lápis (485)

Memória descritiva
Sul
O Sul não existe.
E ninguém o explicou melhor que Montalbán.
Terá sido inventado pelos povos do Norte, e posto à venda pelas agências de viagens.
Também não fui indiferente ao Sul.
Mesmo que ele não fosse mais do que uma palavra.
Ataviei-me de cores e de cheiros minuciosamente elaborados na Beira, e parti para o Algarve.
O Sul.
Cedo me dei conta de que havia mais sul a Sul.
Mas apenas transpus o Estreito, seguindo a rota delineada pelos profetas da minha geração.
Paradoxalmente, esse outro Sul, a sul das praias de Tarifa, apenas me devolvia ao Norte.
Neste caso, o de África.
Os labirintos sempre me fascinaram, mas eu preferia mil vezes partir à procura do fim do arco-íris, do que decantar os vasos comunicantes do horizonte.
[Longe do mundo; frenesi, 2004]

8 de fevereiro de 2014

Hoje é dia de bisa

Silves, 8 de Fevereiro 1929
 

7 de fevereiro de 2014

Hoje é dia de pai

7 de Fevereiro, 1977, 11h00

5 de fevereiro de 2014

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Nunca vou esquecer o sexo que vivi contigo,
mas não foi só por isso que te amei.»
(Teolinda Gersão)

(Nem sempre a lápis (484)

Memória descritiva
Silêncio
Creio que o vislumbrei através do espaço dos castigos:
o sótão, a parede, a sala vazia das escolas e colégios.
E também as igrejas e o quartel, que eram outras formas de punição.
Devo ter-me portado muito mal - como diz quem se porta bem - para a minha formação lhes ter merecido tantas atenções.
Depois aprendi outros silêncios:
a vastidão das fazendas, em Salgueirais, a solidão dos montes alentejanos, a parada do quartel, em Santa Margarida.
Quando comecei a fugir, às vezes parava o carro e saía para ouvir a noite.
Mas a única vez que me senti perto do silêncio, foi em Aragão, no meio dos Montblancs.
Ao contrário do que me disseram, ou julgava ter ouvido, a morte é a coisa menos silenciosa.
Pelo menos, a avaliar pelos vivos.
Dizem, ou melhor, acusam-me cada vez com mais frequência, que estou a ficar descompreendido.
Se calhar, julgam eles, para me pouparem o desgosto de estar a ensurdecer.
Quem me conhece, sabe como cultivo essa espécie de autismo, onde julgo encontrar-me com o silêncio.
Mas, embora silenciosa, não creio que a surdez seja a via do silêncio.

Papiro do dia (434)

«Ama-se alguém porque sim, e não há nada que explicar. O grande equívoco da pornografia é acreditar que o sexo pode ser visível. Porque não é: faz-se, sente-se, vive-se, fica na pele, no corpo, na alma, na memória, mas está para além do que os olhos podem alcançar. O sexo é invisível. Contá-lo é como contar uma viagem de barco a partir da margem, analisando as oscilações da água e as posições do navio, sem ter embarcado. Quando a única coisa real era a viagem. Só depois se podia, sempre de modo imperfeito e aproximado, falar dela. É verdade que comecei por admirar o teu rosto e desejar o teu corpo. Notava a maneira como te vestias, que nunca era ostensiva nem provocante, era pelo contrário discreta, levemente sofisticada. No entanto a forma como te vestias despertava-me o desejo de despir-te.»
[Teolinda Gersão, A cidade de Ulisses; Sextante, 3.ª ed. Outubro 2012]
 

3 de fevereiro de 2014

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

«Rapprocher le travail de l'ecrivain et celui de la danseuse est une métaphore,
ce n'est pas un jeu de mots.»

Às vezes lá calha...

 

«Já cheguei a um acordo perfeito com o mundo:
em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio.»
(Raduan Nassar)
 

Nem sempre a lápis (483)

Memória descritiva
Salto
Pertenço a uma geração que antecipou os pátrios êxitos no atletismo.
Pouco dado aos desportos, os estádios, balneários, a destreza de lançamento do botão ou do pião, colheram sempre a minha incompreensível indiferença.
Embora algumas cabeças me reconhecessem uma inesperada pontaria.
Ou vocação para as abrir à pedrada.
Nesse tempo era assim, ainda não tinha aprendido outras armas.
Porque existem muitas e desvairadas formas de se abrir uma cabeça.
A minha aversão aos desportos, era proporcional à obrigação da ginástica e moral.
Disciplinas determinantes para nos inculcarem uma vontade enorme de desobediência.
Pelo menos, falo por mim.
E já não é pouco.
Começámos a treinar à frente do sarrafo do guarda da serração.
Do feitor que nos contrariava o apetite frutícola.
Dos choques que nos zurziam nas cidades universitárias.
Era ainda o atletismo, uns quantos metros barreiras, a maior parte das vezes consagrados no hospital e na prisão.
Desporto de elites, como se depreende, até pelo desvelo com que o regime unificou as duas instituições.
O salto era reservado à mão-de-obra barata, sem perigo de qualificação, e lucro garantido.

Papiro do dia (433)

«Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo se repente sob os olhares à sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiverem em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o pudor (o seu pudor, bem entendido), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome depois com sua nudez no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado), e se agache depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.»
[Raduan Nassar, Menina a caminho; Cotovia, Outubro 2000]