30 de setembro de 2012

Daddy


28 de setembro de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«É para coisas dessas que me estou a ver cada vez mais virado desde que decidi não me afligir muito mais com aquilo que não depende de mim (aprendi em Marco Aurélio e Epicteto.)»
(Ruy Duarte de Carvalho)

Nem sempre a lápis (321)



A mulher pegou num livro, sem curiosidade. Apenas o tempo e as andanças os distinguiam, agora amontoados na estante que ele montara e arrumara; a última, dissera-lhe. Era uma estante escrita da esquerda para a direita, linha a linha, prateleira a prateleira, com notas à margem, empilhadas. Se não houvesse tiras de papel e bilhetes de autocarro e pacotes de açúcar (vazios) a marcar leituras, lidas e relidas, dir-se-ia que os livros nunca tinham sido abertos. Não eram os que o viu ler e anotar, recebidos depois de escritos na língua dele; por ela. A mulher sentou-se a folhear um livro; afigurou-se-lhe que devia lê-los, concluir a morte dele.

Papiro do dia (263)

«A distância entre aquelas sandálias, que ao fim da manhã estariam prontas, novas, de couro cru, rude, e as que o próprio Ketia-Ketia calçava então, moídas pelo tempo e pelos seus andares, eis o que me interpelava. O objecto impregnado pela relação do uso. É à volta disso que há-de residir toda a carga que empresta tamanho valor àquelas peças, de uso quotidiano, imediatamente perecíveis nestas sociedades, quando são introduzidas nos circuitos da arte e o mercado internacional depois preserva e valoriza como tesouros. Uma cabaça para bater o leite, aqui, nova ainda mas aparelhada já para prover à sua função, e até adornada, tem já inscrito nela todo o investimento criativo que compete a uma obra de arte. Mas só o uso útil que se lhe vai extrair há-de conferir-lhe estatuto de coisa com valor plenamente simbólico. E, ainda assim, ninguém irá poupá-la ao uso, seria negá-la a ela e ao seu valor real, até que um dia quebre e o tempo normal a extinga depois. Qualquer coisa assim para relacionar com muita outra matéria e associar às modalidades e à moda do efémero nas artes modernas. Delírios…»
[Ruy Duarte de Carvalho, Os papéis do inglês; Cotovia, 2000;
claro...]

27 de setembro de 2012

25 de setembro de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

QUINTAS DE LEITURA
27 de Setembro | 22h
Café-teatro do Teatro do Campo Alegre

PEDRO MEXIA // poeta convidado
João Luis Barreto Guimarães // apresentação
Adriana Faria, Rita Loureiro, Teresa Coutinho e Pedro Mexia // leituras
Ana Deus (voz) e Ricardo Caló (piano) // entre leituras
Olga Roriz dá corpo ao solo «Mon Amour» // performance
B Fachada // concerto

Às vezes, lá calha...

«Para além do que, desastrado sou e entendo que o direito ao disparate
é um dos direitos fundamentais do homem.»
(Ruy Duarte de Carvalho)

Nem sempre a lápis (320)



«A nobreza de uma casa vê-se pela palmeira e pelos cavalos», explicou e acrescentou, com justificado orgulho: «A casa de um lavrador não tem sala». E se dos cavalos não resta outra memória além da dela, octogenária, e se a palmeira sucumbiu à praga que dizimou os brasões das casas do campo, franqueou-me a cadeira de madeira de laranjeira e o olhar para o lume; o fogão caiado na lareira.

Papiro do dia (262)


 
«Desde que os bois tinham começado a ser abatidos, e a carne a ser cozinhada segundo as regras da sua divisão, da sequência do seu consumo e do acesso estatutário às partes, o chão tremia com as danças que muitos homens adultos e mulheres sobretudo mais-velhas não largavam. Os rapazes das famílias anfitriãs permaneciam, por dever de função, à volta da carne, a dividi-la e a cozê-la, enquanto as mulheres não paravam de trazer água e lenha, hieráticas silhuetas de braços erguidos e passo pesado a fluir e a refluir em filas e a dar corpo e voz às torrentes do crepúsculo.
Aquela era uma noite de junho, era mesmo a noite do solstício de junho, quando o sol inverte a marcha dos seus lugares de nascer e pôr-se, eu via o fogo, os fogos, havia fogos por todo o lado, e não podia deixar de evocar fogos, fogueiras, solstícios por toda a parte do mundo, por todos os hemisférios, evocações que hei-de encontrar em casa, voltando a Luanda, certamente em Eliade e Caillois, sobre o sagrado, sobre festas, orgias, saturnais, e num belo texto qualquer que eu sei que há, da Yourcenar, e outro nos Diálogos com Leuco, de Pavese, de que Jean-Marie Straub extraiu um daqueles límpidos episódios, talhados em pedra branca, do La Nuée et la Resistance…»
[Ruy Duarte de Carvalho, Os papéis do inglês; Cotovia, 2000]

22 de setembro de 2012

É bom morar no campo

que vai dar à praia

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Em qualquer sítio li que aventura, a sério,
é só depois de contada.»
(Ruy Duarte de Carvalho)

Nem sempre a lápis (319)

 
 
Não, não li e também ninguém me contou, mas imagino que assim se passe, enquanto aguardo o verde no semáforo da estrada que estanca a aridez do lameiro, vindo até perder de vista. Quando o vento que traz a chuva parte com ela e os campos se alagam, a memória da lagoa emerge do leito aluviado o tempo necessário para o Sol chocar os ovos das rãs na lama amassada pela lentidão do gado. As cegonhas chegam com as primeiras filas de trânsito e as rãs desovam nas escassas poças do pântano. Depois, são levadas no bico e Lagoa continua a ser uma placa à beira da estrada, com o gado de olhos postos no trânsito; nas idades do semáforo.

Papiro do dia (261)

«Saí sozinho, logo que cheguei, para fotografar pedras à volta do acampamento, no regresso atravessei uma linha de água em sítio errado e desfiz o rumo, mantive as cabeças dos morros à esquerda mal ultrapassei a zona, internei-me em mata sempre baixa mas cada vez mais densa, deixei de ver à volta, fui ter muito à frente, quer dizer, perdi-me. Subi a uma pedra, vi a antiga pedreira de mármore já assim tão perto, do acampamento só se lhe vê é a cabeça branca. Retrocedi. Agarrei então o curso de uma outra mulola, havia de vir ter até ao rio, rodeei um sombrio cemitério, entalei no cinto um ramo de folhas verdes, e aí apanhei um caminho de bois que acabou por trazer-me a estas nascentes aqui ao lado. Andei às voltas por me julgar bastante, em terreno alheio.»

[Ruy Duarte de Carvalho, Os papéis do inglês; Cotovia, 2000]

20 de setembro de 2012

Disponível aqui





 
Gato Vadio (Porto)
Livro Antigo (Coimbra)
também por aqui
ocheirodoslivros@hotmail.com 

19 de setembro de 2012

Como os maridos...

... é natural que também os autores sejam os últimos a saber

18 de setembro de 2012

Breve interlúdio musical


(para o MEC e o Ricardo Camacho, retrospectivamente)

Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Já te deixaste de ler artigos a teu respeito, já te deixaste de ler críticas aos teus livros, mas isto passou-se noutro tempo, em que ainda não tinhas aprendido que ignorar o que as pessoas dizem sobre um escritor é benéfico para a sua saúde mental.»
(Paul Auster)

Nem sempre a lápis (318)



Conheço os trilhos batidos da ternura. Da melhor e da pior forma; irresistíveis como becos que sabemos sem saída.
Pairam todos na minha memória e, se me dedico momentaneamente mais a um do que a outro, não me surpreende a infidelidade reclamada pelos outros. Tão distantes e anónimos que se confundem.
Reconheço que os trilhos da ternura são a minha maior fraqueza, um brasido latente que insisto em ignorar e se torna incontrolável, quando o julgo ignorado.
São como a doença, a febre, o crepúsculo que se pôs e ainda vejo.

Papiro do dia (260)

«Para fazer o que fazes, precisas de caminhar. É a caminhar que te vêm as palavras, que ouves os ritmos das palavras que vais escrevendo mentalmente. Um pé à frente, depois o outro, a batida dupla do teu coração. Dois olhos, dois ouvidos, dois braços, duas pernas, dois pés. Isto, e depois aquilo. Aquilo, e depois isto. A escrita começa no corpo, é a música do corpo, e ainda que as palavras tenham significado, possam às vezes ter significado, é na música que os significados começam. Sentas-te à mesa para escrever fisicamente as palavras, mas na tua cabeça continuas a caminhar, sempre a caminhar, e o que ouves é o ritmo do teu coração, o batimento do teu coração. Mandelstam: “Gostava de saber quantos pares de sandálias gastou Dante enquanto trabalhava na Commedia.” A escrita é uma forma menor de dança.»
[Paul Auster, Diário de Inverno; trad. Francisco Agarez, ASA 2012]

17 de setembro de 2012

16 de setembro de 2012

15 de setembro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um (longo) novo dia



Ha uns anos, antes de me radicar no campo, tinha por habito passar os fins-de-semana em turismo rural.
Conheci belos locais por este nosso país fora. N'um deles, Aldeia de Chão da Velha, perto de Niza, conheci o ser mais rico e enigmático, até hoje. O seu nome, João Louro, tinha 91 anos e soube ha pouco tempo, por uma coincidência extraordinária, que já não vive. Este meu Amigo, João Louro era analfabeto, mas... lia.
Como é isso possível, perguntam-me todos, quando refiro esta particularidade.
Simples, o meu Amigo João Louro, já sabia de cor todas as palavras, desde que escritas em letra de imprensa. Parece impossível; no entanto confirmei esta raridade.
Muitos de nós, tal como o meu Amigo João Louro, "decoramos" a vida, e quando nos aparece uma situação nova, atrapalhamo-nos com ela, ficamos "às aranhas". Mas o meu Amigo João Louro, talvez porque possuia uma índole diferente, não se limitou a decorar as palavras, ou, as suas formas; ele decorou a vida também. Aqui, temos de distinguir o significado das palavras; decorar palavras significa memoriza-las e decorar a vida, significa ornamenta-la, dar-lhe brilho e cor.
Então o meu amigo João Louro, possuia também uma arquivo mental impressionante, relatava-me com precisão todos os trabalhos sasonais, no campo, recitava-me as estrofes que os de cá, cantavam ao desafio com os de lá, enquanto procediam às mondas, às ceifas, às malhas. Tocava concertina e animava os bailaricos nas redondezas e... nunca saíu do seu lugar. Mas... um dia surpreendeu-me. Conversávamos àcerca do uso de pesticidas e fertilizantes na agricultura e, depois de me ter aconselhado a escolher sempre fruta com bicho, quande fosse ao mercado (porque se tinha bicho, é porque não tinha veneno) relatou-me uma notícia que tinha visto num jornal de ciência, onde vinha explicada uma experiência feita na América, com uma certa espécie de pássaros. Como me mantive calado e concentrado no relato que o meu Amigo fazia, ele terá pensado que não estivesse a perceber a que se referia e então, levantando o braço, aponta para um lado e "dispara-me" com esta: na América, um país muito grande que fica nesta direcção!
Fiquei atordoado com a exegese geográfica do meu Amigo João Louro, que me obrigou a um exercício mental tridimensional, para me situar geográficamente e confirmar se realmente a América ficava naquela direcção.
Depois de confirmar e porque pensei que pudesse estar perante um caso de pura coincidência, atrevi-me: ò Sr. João, então e a Roménia, em que direcção fica?
Automáticamente, levantou o outro braço e apontou na direcção quase oposta. E a Noroega?
Piscou um bocadinho e sem tirar os olhos de mim, rodou o mesmo braço um quarto de círculo, apontando para Norte.
Óh cum caráxas!!!
Este homem não existe, pensei...

Às vezes, lá calha...

«É aqui que vives e é aqui que queres continuar a viver, até ao dia em que não possas subir e descer as escadas sozinho. Não, mais tempo: até ao dia em que não possas subir e descer as escadas a rastejar, até ao dia em que te levem para a cova.»
(Paul Auster)

Nem sempre a lápis (317)

O Sol estava pendurado no cume do céu branco. As aves não se afoitam no sufoco do ar, vazio; nem uma rola, nem uma popa, na berma da estrada estreita. A terra era a pele de uma vaca, mal amanhada entre alfarrobeiras e figueiras e amendoeiras e romãzeiras, propriedade da memória dos muros. Tudo velho, gasto pelo tempo e o vaivém das estações; digamos assim. Essa da pele da terra, ouviu-a ao Miguel-dos-caracóis, a comunicar a cor da pelagem do cão atropelado por um lavrador na passadeira em frente da esplanada; vermelho como uma vaca. Atalhou pelos Cabeços para evitar o desafio das rotundas; a ler paisagens e a sortear a entrada na Nacional. Nas duas últimas horas, era a segunda vez que pegava no carro. Ia buscar a cadela à tosquia. Cruzou-se com o acidente no regresso. Prosseguiu quando chegou a sua vez; 35º na rotunda, anotados na frescura centenária da casa.

Papiro do dia (259)

«De nada te servem os bons velhos tempos. Sempre que te dá para a nostalgia, para chorar a perda das coisas que pareciam fazer a vida melhor então do que é agora, mandas-me parar e pensar melhor, olhar para o Então com o mesmo rigor com que olhas para o Agora, e depressa chegas à conclusão de que existe pouca diferença entre eles, de que o Então e o Agora são essencialmente o mesmo.
Ainda, assim, há coisas dos velhos tempos das quais tens saudades, ainda que não desejes que esses tempos voltem. Do toque dos telefones antigos, do matraquear das máquinas de escrever, do leite em garrafas, do basebol sem batedores previamente escolhidos, dos discos de vinil, das galochas, das meias de vidro com cinto de ligas, dos filmes a preto e branco, dos campeões de pesos pesados, dos Brooklyn Dodgers e dos New York Giants, dos livros de bolso a trinta e cinco cêntimos, da esquerda política, dos restaurantes judaicos de lacticínios, das sessões duplas nos cinemas, do basquetebol antes do cesto de três pontos, dos cinemas sumptuosos, das câmaras não digitais, das torradeiras que duravam trinta anos, do desprezo pela autoridade, dos Nash Ramblers, e das carrinhas com painéis de madeira. Mas não há nada de que tenha mais saudades do que do mundo como ele era antes da proibição de fumar em locais públicos. Desde o teu primeiro cigarro, aos dezasseis anos (em Washington com os teus amigos, para assistir ao funeral de Kennedy), até ao fim do milénio passado, foste livre – com poucas exceções – de fumar onde muito bem te apetecesse. Para começar, em restaurantes e bares, mas também na sala de aula da faculdade, na geral dos cinemas, nas livrarias e lojas de discos, nas salas de espera dos consultórios médicos, táxis, nos recintos e pavilhões desportivos, nos elevadores, nos quartos dos hotéis, nos comboios, nos autocarros de longo curso, nos aeroportos e aviões, a nos autocarros que, nos aeroportos, te levavam para os aviões. É provável que o mundo esteja agora melhor com as suas agressivas leis antitabaco, mas também se perdeu alguma coisa, e, seja qual for essa coisa (uma sensação de bem-estar? tolerância pela fraqueza humana? sociabilidade? ausência de angústia puritana?), tens saudades dela.»
[Paul Auster, Diário de Inverno; trad. Francisco Agarez, ASA 2012;

14 de setembro de 2012

13 de setembro de 2012

sucessora ou sucedâneo do Governo de Vichy

12 de setembro de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O desafio da liberdade moderna, ou a combinação de liberdade e isolamento que nos confronta, é construirmo-nos. O perigo é o de se poder emergir do processo como uma criatura não inteiramente humana.»
(Saul Bellow)

Nem sempre a lápis (316)

De manhã fora regar e ao fim do dia, apoiado no cabo da enxada, olhou para a terra cavada e considerou, ofegante: «assim ficou mais bonito». Do lado oposto da rua o vizinho a tudo respondia «pois», sentado na cadeira de rodas. Um andar acima, assistia ao diálogo dos dois lavradores com as pernas doridas; há muito que não andava a pé.
No dia seguinte, voltou ao bairro e não o reconheceu, alheado da violência urbana. Chegou a casa e foi levar o lixo. Depois caminhou pelos trilhos cobiçados que via ao volante e fez o percurso dos suicidas sem abrir cancelas, sem uma corda para pendurar numa figueira, sem ter a certeza de ter voltado para casa.
Podia vê-la como um presídio, cela de eremita, moinho e torre de filósofo, camarata de manicómio. E podia senti-la simplesmente como era: uma casa com as portas abertas para afogar o olhar – saíra sem dar pelos cães.

Papiro do dia (258)

«E vim a descobrir que tinha razão. Grielescu estivera ligado aos nazis, não à mais suave forma italiana de fascismo. É difícil dizer quão politizada tinha sido Madame Grielescu. A minha impressão é a de que, nos dias antes da guerra, era uma beldade cheia de estilo, uma coquete da alta sociedade. Podíamos facilmente visualizá-la a sair de uma limusine com um chapéu redondo. As mulheres que vestiam boas roupas e bâton vermelho-vivo geralmente não se metiam em política. Estas senhoras europeias geriam o comportamento social dos maridos – os machos da sua espécie. Os homens existiam para abrir portas e puxar cadeiras à mesa de jantar.
Madame Grielescu nunca estava completamente bem. A julgar pelas suas rugas, estava para lá dos sessenta, infeliz com o facto, mas também muito exigente com os homens – um manual ambulante de etiqueta. Era impossível adivinhar o que sabia do passado do marido na Guarda de Ferro. No fim dos anos trinta, quando os alemães tinham conquistado a França, a Polónia, a Áustria e a Checoslováquia, Grielescu tornara-se uma espécie de guru cultural em Londres e mais tarde tivera o seu papel em Lisboa durante a ditadura de Salazar.»
[Saul Bellow, Ravelstein; trad. Rui Zink, a preço silly pelo “DN”;
Chalet Barahona]

11 de setembro de 2012

... é que não adianta

10 de setembro de 2012

Quem abre assim a carta...

«Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo” ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que falo, mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.»

9 de setembro de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Isto, penso eu, tem de ser mencionado, mas não mais do que mencionado. O mais simples de todos os seres humanos é, por esta ordem de ideias, esotérico e radicalmente misterioso.»
(Saul Bellow)

Nem sempre a lápis (315)

«Limão, vinagre, água quente, sabão, cinza e bicarbonato»; enumeraste, sorridente com o excelente resultado. E Sol, acrescentei com o olhar; e o Sol nos gestos.

Papiro do dia (257)

«O legado de Ravelstein para mim era um tema – ele pensou que me estava a dar um tema, talvez o mais importante que eu alguma vez tivera, talvez o único realmente importante. Mas o que um tal legado significava era que ele iria morrer primeiro que eu. Se eu o antecedesse, ele decerto não escreveria uma elegia sobre mim. Qualquer coisa para além de uma página para ser lida na cerimónia fúnebre teria sido impensável. E no entanto éramos amigos íntimos, mais íntimo não seria possível. Era da morte que nos estávamos a rir e, é claro, a morte aguça o espírito cómico. Mas o facto de estarmos a rir juntos não significava que estivéssemos a rir pelas mesmas razões.»
[Saul Bellow, Ravelstein; trad. Rui Zink (a preço silly pelo “DN”);
trema]

6 de setembro de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Eu gosto de dizer, quando me perguntam se li o Finnegan, que o estou a guardar para a casa de repouso. Mais vale entrar na eternidade com Anna Livia Plurabelle do que com os Simpsons a asneirar no ecrã de TV.»
(Saul Bellow)

«É bom trabalhar nas Obras» (112)

Começa assim:

«Até ontem à noite, a andar pelas ruas molhadas de Vallcarca, não fazia ideia de que nascer numa família como esta tinha sido um erro imperdoável. De súbito, entendi que tinha estado sempre só, que nunca tinha podido contar com os meus pais nem com um Deus a quem pudesse encomendar a busca de soluções, embora, à medida que ia crescendo, fosse adoptando o costume de delegar a carga do pensamento e a responsabilidade dos meus actos em crenças imprecisas e em leituras muito diversas. Ontem, terça-feira, ao anoitecer, quando voltava de casa de Dalmau debaixo do aguaceiro, cheguei à conclusão de que essa carga só a mim diz respeito. E que as minhas atitudes, acertadas e erradas, são da minha responsabilidade e só minha. Precisei de sessenta anos para ver isto. Espero que me entendas e compreendas quanto me sinto só e desamparado e a imensa falta que me fazes. Apesar da distância que nos separa, sigo o teu exemplo. Apesar do pânico, agora já não aceito tábuas de salvação para não me afogar. Apesar de algumas insinuações, mantenho-me sem crenças, sem sacerdotes, sem códigos consensuais que me afastem do caminho para não se sabe onde. Envelheci e a dama da gadanha convida-me a segui-la. Reparo que moveu o bispo preto e, com um gesto cortês, incentiva-me a continuar a jogada. Sabe que estou muito mal servido de peões. Em todo o caso, ainda não é de manhã e olho para ver que peça posso mover. Estou só diante do papel, é a minha última oportunidade.»

[Jaume Cabré, Jo Confesso; em tradução para a Tinta-da-China]

Papiro do dia (256)

«Ambos tínhamos vivido em França. Os franceses eram genuinamente educados – ou tinham sido, em tempos. Neste século tinham apanhado uma dura sova. Contudo, ainda tinham uma intuição real para as belas coisas, para o lazer, para ler e conversar; eles não desprezavam as necessidades do corpo, as necessidades humanas básicas. Nunca deixo de reconhecer isto aos franceses.
Em qualquer rua podíamos comprar uma baguette, um par de cuecas taille grand patron, ou cerveja ou brandy ou café ou charcuterie. Ravelstein era ateu, mas não havia razão para um ateu não ser influenciado pela Sainte Chapelle, não ler Pascal. Para um homem civilizado não havia vivência, atmosfera, como a parisiense. Pela minha parte, tinha-me sentido bastantes vezes desprezado e maltratado pelos franceses. Nunca considerei Vichy um mero produto da ocupação nazi. Eu tinha as minhas próprias opiniões acerca da colaboração e do fascismo.»
[Saul Bellow, Ravelstein; trad. Rui Zink, a preço silly pelo “DN”]

5 de setembro de 2012

MEGAPARSECS
Samuel Rama

MEGAPARSECS designa uma unidade de medida para uma área excessivamente grande, por exemplo, 10 milhões de anos-luz equivalem a 3 megaparsecs.
MEGAPARSECS, é uma instalação de carácter escultórico que parte do espaço da sala negra do Teatro da Politécnica para criar uma certa noção de paisagem que convoca o tempo geológico e o espaço lumínico circundante exterior do Jardim Botânico da Universidade de Lisboa.

No Teatro da Politécnica de 5 de Setembro a 20 de Outubro
3ªf | 15h00 às 20h00 4ªf | 15h00 às 21h00 5ªf a Sáb. | 15h00 às 23h00

4 de setembro de 2012

3 de setembro de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A querida Flo retalhou o Finnegans Wake. Joyce era dos Grandes, talvez o Maior de todos. Deram-me à luz, deitaram-me e amamentaram-me sobre a carcaça desfolhada da obra-prima menos lida do mundo.»
(Sam Savage)

Nem sempre a lápis (314)

Nunca sei que surpresa os gatos me reservam, quando desço e abro a porta da rua. Entram com o dorso arqueado e a cauda ondulante, miados e marradinhas, disputam o meu colo sentado na casa de banho; tudo às claras, no campo. Os cães saem para perceberem se vamos passear, enquanto abro o atelier e ligo o computador, e servem-se da comida dos gatos, entretidos e indiferentes à minha voz, a comerem a dos cães. Não sendo unha com carne, também não sabem o que seja cão e gato. Fecho a porta de casa, passando a ter o cuidado de verificar se nenhum subiu para a sala (e dar com ele?), fechada a porta do quarto; só com os dois na rua entro no atelier e atiro as trelas para cima da mesa debaixo do telheiro. Sossego a expectativa dos cães e vejo, no chão, um pássaro que arriscou demais o raide ao comedouro e jaz abatido em combate desigual; vejo o corpo espalmado de uma osga demasiado confiante na viscosidade das patas; já entraram no atelier e deixaram outro pássaro junto dos meus pés descalços, para brincarmos. Não faço ideia que lembrança vão deixar em cima do teclado; já estou por tudo. Este Verão não vale a pena esperar pelos camaleões, estar atento ao podar os aloendros, ao estendal da roupa perto do muro. De um momento para o outro, assisto à debandada, ao êxodo das aves rodeado de gatos. Que eu saiba, cá em casa passou a haver dois gatos e meio: o Pepe e a Gata, os residentes, mais o Mascarilha. Também preto, mas com o queixo e o peito branco, foi-se aproximando vindo não sei de que vizinho. Aos poucos, transformaram a loggia, sob a qual trabalho, numa espécie de Sociedade Recreativa dos Gatos do Monte Alto, onde servem óptimos petiscos depois da sesta e, para mim, é um prazer vê-los a descerem a escada de ferro como eu agora gostaria de poder caminhar pela praia com os cães; na boa. O trio felino revolveu as mantas que cobriam os caixotes e, se não arrisquei um malho para procurar livros, também não vou subir a escada só para o contrariar. Assim, vejo-lhes as cabeças e faço-os descer com o truque de que os vou aviar, aviando-me eu da certeza de não ser obrigado a ouvir poucas-vergonhas no andar de cima, digamos assim, nem os ratos colonizarem aquele universo. Frase que termino com a sensação, crescente, da nuca do velho livreiro espiado por Firmin, sem ter à mão o livro de Sam Savage.