30 de abril de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Havia duas torneiras que se giravam e a água saía, quente ou fria. Experimentara primeiro a fria, e depois um pouco a quente; e vira as palavras impressas nas torneiras.»
(James Joyce)

Nem sempre a lápis (274)

Deitava-se e passava levemente pelas brasas. Despertava e permanecia muito tempo – assim o confirmava o relógio, quando o olhava – de olhos abertos no escuro. Conhecia o desfecho do ritual. Acabava por acender a luz e pegar num lápis e num bloco estrategicamente colocados em cima dos livros; ao lado da cama.
Deitava-se de lado, apoiado no cotovelo, e escrevia até ver as letras desmaiadas pelo cansaço que antecede o sono.
Era um leitor que escrevia para o dia seguinte; não gostava de ler.

Papiro do dia (212)

«Pensou que a sua doença estava no coração, se era possível ter uma doença em semelhante órgão. Fleming era gentil querendo saber o que se passava. Ficou com vontade de chorar. Fincou os cotovelos na mesa e começou a tapar e a destapar os ouvidos. Cada vez que libertava os lóbulos das orelhas ouvia o rumor do refeitório. Trovejava como um comboio à noite. E quando voltava a tapar os ouvidos o bramido ensurdecia, como quando um comboio penetra num túnel. Uma noite, em Dalkey, o comboio estrondeara da mesma forma, e depois, ao entrar no túnel, o estrépito desaparecera. Fechava os olhos e o comboio continuava, rumorejando, depois parava, voltava a fazer barulho e tornava a calar-se. Era divertido ouvi-lo rugir e parar, e depois voltar a seguir, já fora do túnel, e depois silenciar.»


[James Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem; trad. Alfredo Margarido, Livros do Brasil, s.d.]

27 de abril de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O prefeito falou com o irmão Michael e o irmão Michael respondeu tratando o prefeito por senhor. Era esquisito pensar que nunca passaria de irmão.»
(James Joyce)

Nem sempre a lápis (273)

A mãe ausentou-se e deixou o fogão de lenha aceso. A criança foi a correr ao quintal e apanhou um frango, radiante com a ideia.
Entrou na cozinha e atirou o frango para cima do fogão em brasa. Em vez do salto e do esvoaçar e do cacarejar que a criança esperava, o frango ficou imóvel a olhá-la.
A criança assustou-se e pegou no frango, com os olhos rasos de lágrimas inexplicáveis.
A mãe entrou na cozinha, mas o frango não disse nada nem fugiram os dois; a dor colava-os ao chão.

Papiro do dia (211)

«Leu os versos começando pelo fim, mas assim deixavam de ser uma poesia. Depois leu a página de guarda de baixo para cima, até chegar ao seu nome. Sim, era ele; e releu a página até baixo. Mas que haveria depois do universo? Nada. Mas haveria qualquer coisa em torno do universo para mostrar onde terminava, antes do lugar onde começava o nada? Não poderia ser uma parede, mas bem podia ser uma linha fininha, em torno de todas coisas. Era algo imenso, pensar em tudo e em todos os lugares. Só Deus o podia fazer. Tentou imaginar o enorme pensamento que esse deveria de ser, mas só conseguiu pensar em Deus. Deus era o nome de Deus, tal como o seu nome era Estêvão. Em francês dizia-se Dieu em vez de Deus, e era também o nome de Deus. E quando alguém rezava e dizia Dieu em vez de Deus, Deus compreendia imediatamente que era um francês que rezava. Mas embora tivesse nomes diferentes em todas as línguas do mundo, e se bem que Deus compreendesse o que diziam todos os homens quando rezavam nas suas línguas diferentes, contudo Deus permanecia sempre o mesmo Deus, e o nome verdadeiro de Deus era Deus.»
[James Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem; trad. Alfredo Margarido, Livros do Brasil, s.d.;

25 de abril de 2012

«Lenine pensava que as cozinheiras podiam ocupar-se das questões de Estado – ou, melhor, não pensava isso, mas dizia-o.»
(Olivier Rolin)

«Governo acompanha “de muito perto” processo dos produtores de ovos.»

[Assunção Cristas]

23 de abril de 2012

Hoje, a partir do meio-dia

Bora lá até à feira

... morfar uma sopa de letras servida em boas lombadas

22 de abril de 2012

21 de abril de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Mãe, pensamos (como este nome ajuda a chorar!), fiz qualquer coisa mal logo no início. Mas não fui eu, foi a vida.»
(Annemarie Schwarzenbach)

«É bom trabalhar nas Obras» (113)

«São estas, sem dúvida alguma, as recordações da minha infância e adolescência, misturadas numa intrincada madeixa com uma infinidade de interpretações de que nem sequer estou consciente. Às vezes, penso que levantar a pesada tampa que me separa da cloaca e ressuscitar as dores do passado não me serve para nada, excepto para reforçar a sensação de desassossego que me trouxe até ao seu consultório. Também me pergunto se o seu silêncio não fomentou a incerteza em que agora me encontro. Às vezes, dá-me para duvidar de toda esta história, como se em vez de uma vivência se tratasse de um relato que repeti a mim mesma uma infinidade de vezes. Quando penso assim, a sensação de desorientação torna-se abismal e hipnótica, uma espécie de precipício existencial a convidar-me a dar um salto definitivo.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito]

Papiro do dia (210)

«Por vezes pergunto-me por que razão anoto todas estas recordações. Porque quero dá-las a ler a estranhos? Porque quero confiar em estranhos ou, se não em estranhos, em gente próxima, bons amigos? Mas confiar em quê? É para mim claro que este livro não contém confidências.
Os meus amigos ingleses por vezes perguntam-me o que estou eu a escrever. Respondo: – Um diário impessoal. Pois nada pode ser menos pessoal do que descrever este vale – um pintor saberia fazer melhor – ou as montanhas e as planícies e as estradas e os rios. Mesmo o relato da nossa vida durante a expedição em Rages está longe de ser pessoal. As noites no terraço de Persépolis? As conversas embriagadas? Que por vezes nos embebedávamos, que em ocasiões raras Bibenski fumava um cachimbo de haxixe ao fim do dia? Tudo isso é impessoal como a melancolia de Mazandaran ou o silvo estridente de um vapor russo no porto de Pahlavi. Como é impessoal olhar para a nuvem delicada que de manhã cedo contorna o cimo do Damavand para voltar a encontrá-la certa noite, por entre as sombras da tenda, como substância irreal pairando em torno dos ombros severos de um anjo…
Por isso, não me pergunto tanto por que razão me entrego ao abandono, mas sim por que razão escrevo sequer. Porque não é fácil escrever, exige um esforço terrível e provavelmente inútil. Obriga-nos a recordar, e ainda que nunca possa livrar-me nem por um momento das recordações, nem eu nem aqueles que partilham o meu destino, gostaríamos ao menos de ser poupados a esse conhecimento.»
[Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia; trad. Isabel Castro Silva, Tinta-da-China, Junho 2008;
acontece]

19 de abril de 2012

18 de abril de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«O silêncio, como o sal, é de uma leveza só aparente: na realidade, se deixarmos que o tempo o humedeça, começa a pesar como uma bigorna.»
(Guadalupe Nettel)

Nem sempre a lápis (272)

Date: Mon, 16 Apr 2012 04:49:42 +0100
From: unatala2@yahoo.es
Subject: Tantos años esperando
To: ocheirodoslivros@hotmail.com
Hola Fallorca, hace años que deseaba saber de tí, despues de seguir mirando, observando la vida en sus múltiples manifestaciones. Hace unos meses, Sumpta me dijo que estabas en el Algarve. Nosotros desde hace 21 años vivimos en Ayamonte, por la única razón que está muy cerca de Portugal. Pasamos con mucha frecuencia a Vila Real de Santo Antonio, donde tengo amigos y amigas y hasta dos namoradas. Vitalista como el copón. Suelo ir en Bici recorriendo el sapar de Castro Marín, reserva natural, y desde hace años, conozco los flamencos, fochas, ánades, (este año aparecieron dos especies que nunca había visto) correlimos, archivebes, zarapitos, cigueñuelas, cigueñas, andrrrios, garzas, garcillas y garcetas, cormoranes etc. Tengo especial predilección por la población de cucos, que cada año, llegan a la mata nacional que hay entre Vilareal y Monte Gordo, llegando hasta Praia verde, este año ya llegarón, el primero que oí fue uno que tenía un defecto en el canto, no hacía el politicamemte correcto, sino que la segunda sílaba salía astragada.
Bueno Gorge, espero que nos veamos pronto.
Un abrazo
Unay Talara

De: O Cheiro dos Livros fallorca
Para: unatala2@yahoo.es
Enviado: Lunes 16 de abril de 2012 14:51
Asunto: RE: Tantos años esperando
Unay, de puta madre!
Eres el hijo de Unay y Mercedes, verdad? Nos conocemos hace un montón de años en Porto Covo. Pues vivimos en el campo, cerca de Armação de Pera, en Porches, sigues «Monte Alto» e despues «Casas do Monte Alto» a mano derecha de tu Bici.
Tus padres, siguen cerca de Granada (no recuerdo el nombre del pueblo)
Diogo va a ser padre de gemelos, en Setiembre. Quedate con mi movil (…),
te esperamos
fallorca

No Gorge, el que te escribe es el mismo Unay que conociste en la praia del Herido en Porto Covo. Ahora le añadí el nombre de mi pueblo Talará (Granada) y hace unos diez años me cambié el nombre por expediente judicial aquí en Ayamonte. Siempre estabas en el recuerdo, pero pasaron muchos acontecimientos, incluso estuve en un loquero en Málaga. Fue Sumpta (no Mercedes) la que me dijo que andabas por el Algarve, y llevaba meses esperando un claro para buascarte. Me alegro mucho, que nos podamos ver, aquí teneis la casa (yo le llamo el castillo) para cuando vengais. Acabo de ver en el mapa Armazao de Pera, entre Albufeira y Portimao, quizas me presente pronto. Estoy pendiente que la compañía Endesa me cambie el contador que mañana o pasado lo hará. Nuestro hijo Unay está en Munchen, casado con una alemana y tiene una hija preciosa llamada Nora de 4 años. Sylvia está ahora en Barcelona en una clínica y allí se fue Sumpta, acabo de habalr con ellas, tiene dos hijas Elena e Isabel, tambien preciosas (se nota el abuelo) de 5 y 3 años. Diogo conoció a Sylvia y a Unay, que no las hizo pasar putas en Lisboa cuando desapareció dos veces. Después en 1985 nació nuestra tercera hija Thaïs. Bueno al paso que va Diogo, pronto tendrás más nietos que nosotros. Te hago una proposición, porque no os venís este fin de semana para Ayamonte, yo estoy sólo y tendríais alojamiento y comida. La comida buena, presunmo de algunos platos muy naturales pero buenos de comer. Puedes saber por donde ando, si pinchas en intenet Unay Talara.
Un abrazo, tan fuerte como los años que nos separaron.
¡¡¡anímate!!!

Papiro do dia (209)

«Naquele tempo, as pessoas fugiam das terras baixas para a montanha – como quando a espada do Islão caiu sobre a Pérsia. Nos últimos vales as aldeias têm nomes persas, e os habitantes não se misturaram com os árabes nem com os mongóis. Estão separados por grandes cordilheiras. Na planície, há apenas desertos vazios, solo lunar ondeado que com a passagem da luz imita o movimento do mar. E a estrada direita que se prolonga sem fim. Numa encosta, muito para sul, fica a cidade de Yezd-i-Khast, que se estende à volta do cume, casa com casa, como as muralhas de um castelo, lançando a sombra da sua silhueta fantástica sobre a planície lá em baixo. Mas as casas estão em ruínas, as paredes esboroam-se por entre as vigias de madeira e o vento sopra pelas janelas vazias. À volta do penedo e da cidade corre uma listra larga e verde-clara de erva, onde pastam ovelhas: um pormenor de brandura.»
[Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia; trad. Isabel Castro Silva, Tinta-da-China, Junho 2008;

16 de abril de 2012

Uma desgraça nunca vem só




«"Que desgraça ser mulher! Entretanto, a pior desgraça quando se é mulher é, no fundo, não compreender que sê-lo é uma desgraça."

Kierkegaard, o grande, enorme, colossal cabrão.»

15 de abril de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O perigo não é compreensível, o medo não tem nome – é isso que o torna tenebroso. E há caminhos tão terríveis que deles já não podemos voltar.»
(Annemarie Schwarzenbach)

«É bom trabalhar nas Obras» (112)

«Havia ainda o Ahmed, um rapaz argelino que tinha reprovado dois anos antes de cair no nosso grupo e que perseguia as minhas contemporâneas com atitude de palmípede num galinheiro.
Ambas admiravam fervorosamente o género masculino de quase todas as gerações, incluindo os professores e os pais das outras alunas. Entre os seus compêndios de leitura, costumavam intercalar revistas cor-de-rosa especializadas em raparigas da idade delas, que publicavam conselhos sobre como utilizar correctamente a maquilhagem e os acessórios para a roupa. A minha relação com elas era boa, embora não demasiado próxima. Às vezes, quando a aula se tornava extremamente aborrecida, ou notavam que tinha ficado nervosa com algum exercício deixado no quadro nas aulas de álgebra, faziam chegar uma dessas publicações até à minha carteira, de mão em mão. Recordo, em particular, um artigo notável que dissertava sobre a forma correcta de praticar o beijo com a língua, que em francês costumávamos chamar “aparafusar com a língua ou fazer linguado”. O autor aconselhava a praticar um tempo a sós com meia laranja espremida, para os lábios adquirirem a destreza e a sensibilidade necessárias. No entanto, na hora da verdade, não nos devíamos esquecer de esticar a língua suficientemente longe para encontrar a do outro, mas não demasiado para não o importunar. Nesse momento, começava a actividade giratória que, no beijo francês, parece constituir o cerne da questão. Nessa altura, era importante encontrar a sincronia para rodar com a língua do outro, à mesma velocidade, primeiro para um lado e depois para o outro. Lembro-me que, ao terminar o artigo, levantei a cabeça e olhei para a turma em conjunto, que fingia estar absorta no exercício. Olhei para os meus companheiros procurando averiguar quantos deles, e sobretudo quais, já tinham passado por semelhante situação. Devo dizer que se tivesse feito um inquérito, a maioria teria mentido quanto à sua situação: naquela idade, tornava-se vergonhoso confessar que não se tinha experiência. As palavras pucelle ou puceau, que se referem a um adolescente ainda por desvirginar, constituíam o pior insulto que alguém podia receber naquele colégio.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
tenrinho]

Papiro do dia (208)

«Os habitantes desta terra são terrivelmente solitários. Precisariam de botas de sete léguas para chegar de uma aldeia à aldeia vizinha, e o que os separa é o deserto, penhascos, terra devastada. No século XIII, os mongóis desceram das planícies da Ásia e invadiram as cidades persas. Escritores árabes contam que só na cidade fértil d Rages terão matado um milhão de pessoas. Em Darmavand, uma aldeia na montanha, os camponeses refugiaram-se na mesquita, mas de nada lhes serviu, os cavaleiros mongóis correram as ruas e mataram tudo. Encontraram mesmo o Alamut, o castelo do “velho da montanha”, que se esconde num penedo da cordilheira do Elburz, e de onde o ismaelita enviava os seus assassinos, rapazes que mastigavam haxixe, para levar a cabo execuções no deserto, ou em Antioquia, cidade dos cruzados, ou no Egipto. O castelo de Alamut era já uma lenda, só com escadas de corda se podia subir ao rochedo – mas os mongóis encontraram o caminho e arrasaram o castelo.»
[Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia; trad. Isabel Castro Silva, Tinta-da-China, Junho 2008;
siga as instruções]

14 de abril de 2012

12 de abril de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

«20 de Dezembro de 1937


Às vezes, lá calha...




«Numa época severa como é a nossa, espera-se que cada um escolha o inimigo certo e um destino à medida das suas forças.»
(Annemarie Schwarzenbach)

«É bom trabalhar nas Obras» (111)

«Devo dizer que, durante o primeiro ano, os doces franceses me sabiam um pouco ao insípido. Nenhum tinha picante, cores fluorescentes ou aspecto radioactivo e isso diminuiu, em boa medida, a minha paixão por eles. Os seus nomes acentuavam a diferença com os do meu país. Em vez de Pulparindo ou Burbuzest, lá tinham nomes como as frutas e os animais: oursons, minibananes, fraises tagada, como se não se distinguissem simplesmente pela substância genética de que eram compostos. Em poucas palavras, faltava-lhes mistério e, sobretudo, o carácter escatológico que enchia de repulsa a expressão dos adultos e aumentava o seu atractivo. Com o passar do tempo, fui tomando o gosto a essas guloseimas bem embaladas e sem ambiguidades. Entre as minhas favoritas, encontrava-se o Malabar, uma chicla que incluía a possibilidade de fazermos uma tatuagem com saliva, bastando lamber a embalagem e colá-la no braço e também um caramelo comprido, chamado Carambar, cujo sabor era semelhante ao dos chupa-chupa de leite, mas de melhor qualidade.
A nossa origem mexicana parecia despertar a curiosidade das crianças daquela escola. Quando surgia a oportunidade, perguntavam-nos se no nosso país, se continuava a usar penacho, se vivíamos em pirâmides e se tínhamos o costume de usar o carro. Eu contava-lhes toda a espécie de coisas para os impressionar. Dizia-lhes, por exemplo, que havia poucos automóveis e que muitas vezes era necessário deslocarmo-nos de elefante para chegar à escola.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito]

Papiro do dia (207)

«Este livro trará pouca alegria ao leitor. Não o poderá consolar nem reconfortar, como muitas vezes os livros tristes sabem fazer, pois é opinião corrente que o sofrimento se reveste de força moral, na condição de ser condignamente suportado. Tenho ouvido dizer que mesmo a morte pode ser edificante, mas confesso que não acredito, pois como seria possível ignorar a sua força implacável? A morte é demasiado incompreensível, excessivamente desumana, e só perde a sua violência quando nela reconhecemos o único caminho sem retorno que nos é concedido para escapar aos nossos falsos caminhos.
É de falsos caminhos que este livro trata, e o seu tema é a desesperança. E se um escritor tem por intenção única despertar a identificação do leitor, justamente esse intuito não poderá aqui ser alcançado, pois só podemos contar com a compaixão e o entendimento dos outros se os nossos fracassos puderem ser explicados, se as nossas derrotas tiverem sido lutadas com coragem até ao fim e se o nosso sofrimento for a consequência inevitável destas duas causas razoáveis.
É um pouco esse o caso da rapariga que escreveu estas notas. Quando tinha já o manuscrito acabado na mão, percebi que teria de construir uma história dos seus antecedentes que fosse clara e acessível a todos. Só assim poderia satisfazer o leitor e oferecer ao editor um livro com préstimo. Mas isso eu não podia fazer sem falsear a verdade, seria uma concessão ilegítima às nossas necessidades espirituais e morais.»
[Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia; trad. Isabel Castro Silva, Tinta-da-China, Junho 2008;
desculpem a insistência]

9 de abril de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«É o preço que temos de pagar pela estabilidade. Tivemos de escolher entre a felicidade e o que as pessoas costumavam chamar arte. Sacrificámos a arte.»
(Aldous Huxley)

Nem sempre a lápis (271)

Tinha, gastei; não tenho, não gasto. Optei por cheirar o ar e consultar o cata-vento e amealhar a chuva na cisterna; ouvir onde gotejam todas as fontes.

Papiro do dia (206)

«Implantado em todas as editoras de língua inglesa desde o início do século XX, e não muito comum noutras línguas (embora o sistema esteja a alastrar devido à influência do mercado inglês em todo o mundo), o processo industrial de edição assenta em várias falácias denunciadas na argumentação de [Axel] Honneth. Entre elas, a mais perigosa pressupõe que um texto literário é “aperfeiçoável”: ou seja, que a escrita deve aspirar a uma espécie de arquétipo platónico, um modelo ideal de texto literário. Segue-se que este ideal se pode alcançar com a ajuda de um especialista, um editor a agir na qualidade de afinador ou mecânico que consegue “aperfeiçoar” o texto graças às suas capacidades profissionais de leitura. Uma criação literária, por conseguinte, não é considerada um “trabalho em curso” intrínseco, nunca fechado, nunca definitivo, fixado no momento da publicação (“Publica-se para parar de rever”, escreveu o autor mexicano Alfonso Reyes), mas como um produto mais ou menos completo, iniciado pelo escritor, aperfeiçoado por um editor e aprovado por vários especialistas em marketing e vendas. Numa recensão de Filhos e Amantes, de D. H. Lawrence, Anthony Burgess queixou-se desse procedimento editorial: “Penso que a tradição anglo-americana de edição precisa, neste momento, de ser chamada à pedra. O editor a quem falta o dom criativo mas é compensado com o gosto artístico tem sido demasiado louvado. Alguns de nós gostaríamos de saber o que Thomas Wolfe escreveu antes de Maxwell Perkins lhe ter deitado a mão ou como era o Catch-22 antes de a finura editorial do antigo editor de The New Yorker o ter lambido até à sua forma final. Não há editores a corrigir partes orquestrais nem pinturas paisagísticas – porque terá o romancista de ser destacado como o único artista que não compreende a sua arte?»
[Alberto Manguel, A Cidade das Palavras; trad. Maria de Fátima Carmo, Gradiva, Junho 2011]

6 de abril de 2012

Jersey girls

N'Jinga Fallorca and Gail Verdi

5 de abril de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O perigo tem diferentes nomes. Por vezes, chama-se simplesmente saudades de casa, outras vezes, é apenas o vento seco das montanhas que acicata os nervos, outras vezes, o álcool, outras vezes, venenos mais letais ainda.»
(Annemarie Schwarzenbach)

Nem sempre a lápis (270)

Este lugar tem um som de gaivota ao fim da tarde, soletrado. Vejo-a depois; é o apelo do muezzin a ecoar no horizonte. É assim que as coisas começam.

Papiro do dia (205)

«A indústria livreira não só produz o seu dogma como também se certifica de que haverá pouco lugar fora dele. As cadeias de livrarias vendem o espaço nas montras e nas mesas ao maior licitador e, por isso, o que o publico vê é aquilo por que o editor pagou. Em consequência, a maior parte do espaço disponível nas livrarias é ocupado por pilhas de best-sellers anunciados como tal à partida, todos eles com um “prazo de validade” implícito, como os ovos, que assegura uma produção contínua. Os suplementos sobre livros, forçados por uma política jornalística geral de se dirigirem a leitores pouco exigentes, concedem cada vez mais espaço a estes mesmos livros “fast-food”, criando assim a impressão de que os livros “fast-food” são tão dignos como qualquer clássico antiquado ou de que os leitores não são suficientemente inteligentes para tirarem partido da “boa” literatura. Este último aspecto é fulcral: a indústria tem de nos educar na estupidez, pois nós não somos naturalmente estúpidos.
Esta literatura existe em todos os géneros, da ficção sentimental ao thriller sangrento, da narrativa histórica à verborreia mística, das confissões reais ao drama realista. Confina firmemente a literatura “vendável” ao reino da diversão, do relaxamento, do passatempo e, portanto, àquilo que é socialmente supérfluo e completamente não essencial. Infantiliza tanto escritores como leitores, levando os primeiros a acreditar que as suas criações têm de ser polidas até à forma final por alguém mais sabedor e convencendo os segundos de que não são suficientemente inteligentes para lerem narrativas mais complexas. Na indústria livreira actual, quanto maior for o público-alvo, mais obedientemente se espera que o escritor siga as instruções de editores e livreiros (e, ultimamente, também de agentes literários), permitindo-lhes decidir não apenas alterações textuais práticas de factos e gramática, mas também intriga, personagens, contexto e título.»
[Alberto Manguel, A Cidade das Palavras; trad. Maria de Fátima Carmo, Gradiva, Junho 2011;
tirar partido]

3 de abril de 2012

2 de abril de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Em vez de promover livros de grande âmbito e profundidade, a maior parte dos editores dos nossos dias cria objectos unidimensionais, livros que são apenas superfície e não permitem ao leitor a possibilidade de exploração.»
(Alberto Manguel)

«É bom trabalhar nas Obras» (110)

«Chamava-se Lisa e o seu filho Benjamín andava no mesmo ano do meu irmão. Viviam numa parte muito bonita da cidade, cheia de vivendas, pequenas mas muito encantadoras. Os móveis eram todos exóticos e estavam junto ao chão, como nas ilustrações de As Mil e Uma Noites. Contou-nos que tinha sido casada com um homem marroquino, o pai do seu filho, mas que as coisas não tinham funcionado bem entre eles. Agora, vivia de novo em França e sentia-se muito mais feliz. Enquanto falava, a campainha tocou várias vezes e, pela porta entreaberta da casa, vimos chegar mais duas ou três pessoas que pareciam amigos dela.
- Nesta casa, as quartas-feiras são colectivas. Eu faço o couscous como em Casablanca e as pessoas que quiserem podem ir aparecendo para nos acompanhar.
Sentámo-nos a comer no chão, sobre umas almofadas dispostas à volta de uma mesa muito baixa. Se na cantine tinha visto utilizar os talheres como lanças, aqui nem sequer estavam presentes. Os comensais mentiam a mão na enorme panela para a levarem logo à boca. Eu sentia-me agradecida por aquele convite que nos tinha evitado passar horas em frente da escola. Quando acabámos de comer, Lisa serviu chá de menta a todos e emprestou-nos o seu telefone para avisar a minha mãe onde estávamos.
- Se não puder vir, não faz mal. Podem aqui ficar o tempo que for preciso.
Mas a mamã chegou de imediato e foi assim como também ela acabou por participar na cerimónia do chá com os restantes convidados. Simpatizou desde o princípio com a nossa anfitriã e trocaram os números de telefone. Desde essa tarde, quando saiu da casa dela, a minha mãe começou a chamar à Lisa, baba cool, uma expressão coloquial que se usa em França para se referir com simpatia aos hippies. Nesses anos, havia muitos em Aix e é provável que ainda continue a haver, pois a cidade presta-se para isso. Lisa abriu-nos as portas daquele novo universo. Conhecia bem os pais da escola e mantinha boas relações com alguns de eles. À medida que a fomos conhecendo, descobrimos que, no fundo, era uma mulher bastante intransigente. Não suportava ninguém que pudesse dar indícios de burguesia. A sua atitude, mais do que cool, podia inclusive raiar o fundamentalismo. Cada vez que o acaso a levava a casa de alguma família endinheirada e conservadora, cometia actos de terrorismo do género de peidar-se sonoramente à mesa da Passagem de Ano ou baixar as calças para urinar na piscina. Connosco, pelo contrário, comportava-se como uma verdadeira dama. Continuámos a visitá-la durante toda a nossa estada em Aix e também mais adiante. Às vezes, também me convidava para sair, como se fosse sua amiga, e tomávamos um café antes de nos metermos num cinema de vanguarda. Com ela, descobri Pedro Almodóvar, cujo filme Que Fiz Eu Para Merecer Isto recordo perfeitamente, apesar de nunca mais o ter voltado a ver.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
ledora]

Papiro do dia (204)

«O modelo económico aplicado desde a Revolução Industrial à maioria das tecnologias e formas de comércio – de produção de bens com o menor custo possível e o maior lucro possível – chegou ao domínio do livro no século XX. Para atingir este fim, grande parte da indústria livreira – em especial no mundo anglo-saxónico – contratou equipas de especialistas encarregadas de determinar que livros deveriam ser produzidos com base num modelo supostamente matemático de previsão dos livros que venderiam. Do estratega dos departamentos de marketing editorial ao comprador para as grandes cadeias livreiras e também, talvez menos conscientes da sua responsabilidade, aos editores e professores de escrita criativa, quase todas as partes da indústria livreira se tornaram, em grande medida, peça de uma linha de produção visando a criação de artefactos para um público, não de leitores (no sentido tradicional), mas de consumidores. É certo que muitos que haviam ingressado na indústria por amor aos livros se mantêm obstinadamente fiéis à sua vocação, mas fazem-no apesar da enorme pressão – em especial no seio dos grandes grupos de edição – no sentido de considerarem o livro, acima de tudo, um objecto vendável. Embora haja, com certeza, editores que conseguiram manter a sua integridade, as decisões editoriais são cada vez mais delegadas nos departamentos de marketing e nos compradores para as grandes livrarias. Como consequência, a autocensura crítica e as considerações comerciais insinuam-se com frequência crescente no reino editorial.»
[Alberto Manguel, A Cidade das Palavras; trad. Maria de Fátima Carmo, Gradiva, Junho 2011;
insinuação]