31 de março de 2012

30 de março de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Os escritores devem encontrar consolo no facto de não haver uma primeira história original nem uma história derradeira.»
(Alberto Manguel)

«É bom trabalhar nas Obras» (109)

«Essa tarde tinha combinado jantar em casa de Alejandro Zambra, escritor e meu amigo. Quando cheguei, contei-lhe a história e pedi-lhe que me acompanhasse ao apartamento daquela mulher. Não era longe de onde ele vivia e aceitou de bom grado. Quando a mãe de Ximena abriu a porta, vi o quadro na parede maior da sua sala. Tratava-se de uma pintura com um poder de atracção igual ao que pode ter um rosto com muito magnetismo. Pelo menos, foi esse o efeito que teve sobre mim. Era, efectivamente, um retrato da nossa árvore, se é que as árvores pertencem a alguém. Sobre as pedras vulcânicas, as silhuetas de algumas crianças sentadas de frente ou de costas, cujos rostos não se conseguiam ver com nitidez; crianças meditabundas que não brincavam, nem sozinhos nem entre si. Crianças como ela e como eu. A pintura emocionou-me até às lágrimas. De repente, revivi a sensação de desamparo constante daqueles anos, mas, tal como nesse tempo, em que o choro em frente dos outros era a última coisa que me permitia, contive-me. Os comportamentos adquiridos durante a infância acompanham-nos sempre, e embora tenhamos conseguido, à custa de uma grande vontade, mantê-los à margem, agachados num lugar tenebroso da memória, quando menos esperamos atiram-se-nos à cara como gatos enfurecidos. Entretive-me a olhar as outras pinturas que a mãe de Ximena me mostrava e a responder delicadamente às perguntas que me fazia. A conversa não foi longa. Creio que nenhuma das duas estava disposta a abrir a comporta das emoções com medo do caudal que teria caído em cima de cada uma; era mais como o assomar das pontas de dois icebergues em movimento submarino. Embora fosse o meu dia livre, estava em viagem de trabalho, e não queria entrar nessa zona de vulnerabilidade que se impõe cada vez que invoco com palavras todas essas recordações e da qual levo vários dias a sair. Também não desejava magoá-la e pô-la num estado semelhante. Naquela casa, Alejandro e eu tomámos um chá e falámos de literatura, deixámos o meu filho brincar com um tambor marroquino que havia por ali. Fiquei a saber que Paula, a sua outra filha, também tinha voltado para Santiago, que tinha sido mãe como eu e era fã de Manu Chao. Depois, fomos embora. Sem deixar mais rasto do que um chupão esquecido.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;

Papiro do dia (203)

«As alterações impostas à força na língua são concretizadas de forma muito mais subtil e gradual, através do uso deliberadamente erróneo de certas palavras desprovidas do seu sentido radical e também através do artifício dos slogans ao modo publicitário e da utilização inteligente de trocadilhos e segundos sentidos. Deste modo, a linguagem literária (ambígua, aberta, complexa, infinitamente passível de enriquecimento) pode ser suplantada pela da publicidade (breve, categórica, imperiosa, final), de forma que acabem por ser dadas respostas em vez de serem formuladas perguntas e a gratificação instantânea e superficial assuma o lugar da dificuldade e da profundidade.
Não são apenas os slogans publicitários e o discurso oficial que vão beber a este uso distorcido da língua. Há também um tipo de literatura que pode ser criado a partir deste vocabulário castrado – é fácil aos leitores e aos escritores serem seduzidos pela sua estética cómoda. Embora o efeito intrínseco de tal obra seja político, o seu objectivo ostensivo é simplesmente divertir: um “produto cultural”, como começou a ser chamado no século XX. O estado actual da indústria livreira é sintomático dos efeitos desta forma subtil de censura.»
[Alberto Manguel, A Cidade das Palavras; trad. Maria de Fátima Carmo, Gradiva, Junho 2011;
vocabulário]

28 de março de 2012

27 de março de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Entre os Esquimós, os territórios da vigília e dos sonhos constituem a única geografia; a paisagem, por seu turno, não tem presença imaginativa. Foi muitas vezes observado que a noção de paisagem é uma concepção urbana e que os que vivem no exterior das cidades não fazem distinção entre uma natureza englobante e um pano de fundo para a acção humana.»
(Alberto Manguel)
[TGV

«É bom trabalhar nas Obras» (108)

«Ximena pintava a óleo. Tinha-a visto umas duas vezes concentrada em frente do seu cavalete, naquele quarto que se me revelava em parte, graças ao limitado aumento dos meus binóculos. Que relação tinha com a sua família?, em que colégio andava e como de dava com os seus companheiros de aulas? Esta e outra dezena de perguntas eram as que me ocorriam à noite, enquanto a via do meu quarto. Também gostava de encontrar afinidades entre nós as duas, para além da localização das nossas janelas, como a cor do nosso cabelo e o facto de, para nenhuma das duas, a infância ser um mar de rosas.
Uma tarde, em que me sentia especialmente triste e necessitava com urgência de me encontrar com ela, assomei à janela antes da hora, para ver se a via por acaso, nem que fosse de passagem, atrás das cortinas do quarto. Então, notei que havia fogo no apartamento dela. Abri de repente a porta do meu quarto e gritei à minha avó para chamar os bombeiros. Recordo que saí a correr para a rua e subi ao montículo sobre o qual estava a árvore e esperei que chegassem. Então dei-me conta: a imagem não era a de um incêndio habitual com o fogo a sair pelas janelas, mas um espectáculo muito mais discreto. As chamas formavam uma silhueta semelhante à de uma árvore de natal. Depois de um tempo insuportavelmente longo, ouviram-se as sirenes e com elas vimos aparecer o camião dos bombeiros. Também chegou uma ambulância que retirou Ximena numa maca. Soubemos depois, que ela própria se tinha banhado com dissolvente para óleo e se chegou o fogo no quarto. A notícia saiu em todos os jornais. Alguém pronunciou a palavra 2esquizofrenia”. Para mim, a explicação era simples: Ximena tinha resolvido fugir, de uma vez por todas, do cativeiro da sua vida.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
lolita]

Papiro do dia (202)

«A 12 de Setembro de 1918, Franz Kafka, de trinta e cinco anos, padecente há muito da tuberculose que acabaria por condená-lo, recusou-se a dar entrada no sanatório ao qual os médicos o queriam confinar e, em vez disso, partiu para a aldeia de Zürau, onde vivia a sua irmã Ottla. Um mês após a sua chegada, recomeçou a escrever: não contos nem um novo romance, mas reflexões, fragmentos de pensamentos e aforismos que seriam publicados em 1931, sete anos volvidos sobre a sua morte, pelo seu amigo Max Brod, sob o título Meditações sobre o Pecado, o Sofrimento e a Esperança. Entre esses fragmentos, dois em particular parecem complementar-se e quase contradizer-se. O primero, com o número 18, afirma: “Se tivesse sido possível construir a Torre de Babel sem a subir, ela teria sido permitida.” O segundo é o número 48: “Acreditar no progresso não significa acreditar no progresso já feito. Isso não seria crença.” O primeiro aforismo parece considerar que não foi a construção da Torre de Babel que desencadeou a ira divina, mas o desejo de atingir logo o Céu, no presente dos construtores; este desejo (uma forma de crença, sugere o segundo aforismo) está condenado a ser enunciado no tempo futuro. Nas palavras de Kafka, para ser eficaz, a linguagem em que enunciamos as nossas crenças tem de nos levar em frente, na direcção de algo ainda não realizado.»
[Alberto Manguel, A Cidade das Palavras; trad. Maria de Fátima Carmo, Gradiva, Junho 2011;
viajar]

26 de março de 2012

25 de março de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Ler é um trabalho de memória que nos permite, através das histórias, desfrutar da experiência passada de outros como se fosse nossa.»
(Alberto Manguel)

Nem sempre a lápis (269)

Já tinha calcorreado seca e meca quando os meus passos deram com este sentido único, indicado pela bloga: «Como se as pernas tivessem sido feitas para nos sentarmos em cima delas, e não estarmos de pé ou a andar.» Prossegui o caminho, agora no encalço do título de Thoreau, convicto de que há livros que fazem bem. Espreguiçado o reconhecimento dos trilhos da infância e da juventude – confinados à vila de Mortágua e à tentação de me apear nas Amoreiras e desembocar no Príncipe Real –, a velhice viria a revelar-me bairros insondáveis de Portimão, vielas de Lagoa com gatos à porta de locais com ardósia, valetas de Porches entupidas com pétalas de amendoeira e o campo que o prazer de caminhar descobre, animado pelos cães. E, aventurando cada vez mais o olhar, seguido pela surpresa dos passos, marco ramos podados e deitados abaixo pelo tempo que arrasto até casa ou serro no local, entretido a andar à lenha. Aguardo a todo o momento o livro na caixa do Correio, se o volume da embalagem calibrado pelo olhar motorizado do carteiro, não decretar que vá ao posto local do outro lado da estrada, onde caminhar é uma atitude suicida. «Levava um aviso para levantar um livro no bolso da camisa», digamos assim.

Papiro do dia (201)

«“Porque estamos juntos?”, a sua resposta foi: “Qual é a alternativa?” Claro que não há alternativa. Para o melhor e para o pior, somos animais gregários, condenados ou abençoados a vivermos juntos. A minha pergunta não implica a existência de uma alternativa; ao invés, procura saber quais os benefícios e males dessa união e como conseguimos traduzir esta imaginação de união por palavras.
Descobri que, com o passar dos anos, a minha ignorância em incontáveis áreas – antropologia, etnologia, sociologia, economia, ciência política e muitas outras – se foi aperfeiçoando enquanto, ao mesmo tempo, a prática de uma vida de leituras aleatórias me legou uma espécie de lugares-comuns em cujas páginas encontro os meus pensamentos nas palavras de outros. No reino das histórias sinto-me um pouco mais à-vontade e, uma vez que as histórias, ao contrário das formulações científicas, não esperam (na verdade, rejeitam) respostas claras, posso deambular neste território sem me sentir forçado a fornecer soluções ou conselhos.»
[Alberto Manguel, A Cidade das Palavras; trad. Maria de Fátima Carmo, Gradiva, Junho 2011;
foi-se a luz]

24 de março de 2012

Não se faz...

23 de março de 2012

22 de março de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Não sei qual é a opinião da senhora, doutora Sazlavski, mas, para mim, o supostamente maravilhoso que a infância tem, segundo muita gente, é uma das rasteiras que a memória nos passa.»
(Guadalupe Nettel)

«É bom trabalhar nas Obras» (107)

«A noite raras vezes é o território das crianças. Eu tinha dormido bem toda a minha vida e não era daquelas pessoas que se detêm a escutar os ruídos da madrugada. Para não pensar no bicho, procurei os meus binóculos e concentrei a minha mente, geralmente mais voltada para o sonho e as histórias fantasiosas, no que se passava lá em baixo no prédio. Ali de pé, atrás das cortinas, vi estacionar homens de fato com atitude ébria ou cansada e caminhar para as suas respectivas portas; vi um adolescente com a namorada aparecer e desaparecer várias vezes detrás dos arbustos que havia em frente do estacionamento; vi um gato a fintar a passagem dos automóveis num jogo suicida. Nada disso conseguiu interessar-me muito tempo, até que levantei o olhar e descobri que no prédio em frente, precisamente à altura do meu apartamento, numa simetria de pasmar, havia outra rapariga que observava o mundo da sua janela, com uma expressão tão infeliz como a que eu devia ter naquele momento. Chamava-se Ximena. Conhecia-a de vista e simpatizava com ela. Tinha-a observado várias vezes a atravessar a rua com aquele ar um pouco ausente que a caracterizava. No entanto, posso dizer que essa noite a vi pela primeira vez, não da maneira indiferente com que se costuma observar o vaivém dos vizinhos, mas de forma realmente atenta, e com empatia. Não podia ter a certeza, mas algo me fez sentir que ela também estava a olhar para mim. De repente, a distância que separava os nossos prédios tornou-se muito curta e senti que, se tentasse, ter-me-ia sido possível aperceber do seu bafo impresso na janela embaciada, escutar a sua respiração, compreender o que estava a viver.
Essa noite introduziu um novo hábito: quando as luzes se apagavam nos nossos respectivos apartamentos, ela e eu acorríamos ao encontro sem falta. O ritual consistia em permanecer de pé, uma em frente da outra, e assim fazermo-nos companhia até sermos vencidas pelo sono.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
território]

Papiro do dia (200)




«Sim, no mostrador branco, 10 segundos pretos para o Mensageiro; para o Director. Mas tanto na carne de um como na cabeça do outro não se apelidaram segundos nem se contabilizaram 10. A dor não é cronometrável; nem comunicável. Aqueles dois não tinham sofrido com o relógio. Sofreram, talvez, de um outro tempo, de uma outra dor-de-vida, que se situa algures: na eternidade? E a ofensa da dor não foi proporcional à distância percorrida pelo indicador mecânico. Aqueles insignificantes 10 segundos pretos camuflaram quilómetros de horas de uma dor privada.
O tempo e a dor não são cordiais; são insolentes.
Quando se encontram na cabeça ou na carne dos homens, não costumam olhar-se nos olhos, nem sequer dar as mãos para um passou-bem.»
[Sandro William Junqueira, Um Piano Para Cavalos Altos; Caminho, Dezembro 2011]

20 de março de 2012



19 de março de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Sabia que, diante da máquina de escrever, tudo seria muito menos simples. Teria com certeza de eliminar esta primeira frase. E a seguinte.»
(Patrick Modiano)
[e esta] 

Nem sempre a lápis (268)




Começou tudo – ou tudo começou? Nunca sei bem e é indiferente, pois o resultado final é sempre certo. – Tudo começou com um ruído imperceptível, um vago chilrear demasiado trinado para ser real. A loucura apresentava-se, com coro e orquestra virtuais, pontualmente ao fim da tarde. Instalava-se na sala com uma languidez desconcertante, à espera que o declínio da luz lhe desse forma. Órfã de parentesco kafkiano, era uma loucura estritamente pessoal e cuidada, dir-se-ia familiar e congénita. E era aqui que se instalava a incompreensão. A loucura não se conformava que lhe fosse prestada uma atenção meramente literária, alheada dos escombros reanimados à sua passagem. A proeza repete-se rigorosamente todos os dias, até um dia ficar para a história.

Papiro do dia (199)

«À saída da sala, caminhara ao acaso pelo bairro. Pairava na luz verde e límpida de que falara Guy de Vere. Cinco horas da tarde. Havia muito trânsito no boulevard e, no carrefour de l’Odéon, as pessoas empurravam-na porque caminhava na contracorrente e não queria descer, como elas, as escadas da estação do metro. Uma rua deserta subia suavemente para o jardim do Luxemburgo. E aí, a meio do caminho, entrara num café, num prédio de esquina: o Condé. “Conheces o Condé?” Começara de repente a tratar-me por tu. Não, não conhecia o Condé. Para dizer a verdade, não apreciava muito aquele bairro estudantil. Recordava-me a minha infância, os dormitórios de uma escola da qual fora expulso e um restaurante universitário, do lado da rue Dauphine, que me via obrigado a frequentar, com um falso cartão de estudante. Eu morria de fome. A partir de então, ela refugiava-se muitas vezes no Condé. Travara rapidamente conhecimento com a maior parte dos clientes habituais, em particular dois escritores: um certo Maurice Raphaël e Adamov. Já ouvira falar deles? Sim. Sabia quem era Adamov. Vira-o mesmo, repetidas vezes, perto de Saint-Julien-le-Pauvre. Um olhar inquieto. Diria mesmo: aterrado. Andava de sandálias, sem peúgas. Ela nunca lera nenhum livro de Adamov. No Condé, ele pedia-lhe às vezes que o acompanhasse ao hotel, porque, de noite, tinha medo de andar sozinho.»
[Patrick Modiano, No Café da Juventude Perdida; trad. Isabel St. Aubyn, ASA, Abril 2009;
olhar inquieto]

17 de março de 2012

[continua]

16 de março de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Vivemos à mercê de certos silêncios. Sabemos muitas coisas uns dos outros. Portanto, procuramos evitar-nos. O melhor, como é evidente, é perdermo-nos definitivamente de vista.»
(Patrick Modiano)

«É bom trabalhar nas Obras» (106)

«A minha avó não gostava que lhe tocassem mais do que o estritamente necessário. Não era contra os beijos, mas reservava-os só para quando houvesse uma razão muito forte para isso. Durante todo o tempo que viveu connosco, deu-me dois. Mais tarde explico-lhe, doutora, quais foram ambas as situações. O problema de ter conhecido uns pais tão amorosos como os meus no passado, é que depois, quando eles não estavam, senti a falta sem remédio de um contacto físico que nem a avó nem ninguém me podia dar nesse momento. Para cúmulo dos males, a minha mãe telefonava de França muito poucas vezes por mês e, devido à diferença horária, as suas chamadas raras vezes coincidiam com os momentos em que estávamos em casa. A avó contava-nos – vá-se lá saber se era verdade – que tinha conversado com ela, que nos mandava mimos e que, embora sentisse muito a nossa falta, “sentia-se muito bem”. Por muito egoísta que soe, saber que a minha mãe era feliz num lugar afastado do mundo, não me fazia sentir da mesma maneira. Claro que me alegrava saber que lá longe, do outro lado do Atlântico, já não chorava todas as tardes, mas entre isso e que “se sentisse muito bem”, havia um abismo. Mais de uma vez, sufocada pela sensação de injustiça que se respirava em casa, teria dado o que quer que fosse para contactar com ela, para falar demoradamente com ela e contar-lhe o que estava a viver. Mas isso nunca foi possível. As chamadas internacionais, nessa altura, eram uma coisa completamente fora do habitual. Além disso, eu não tinha nenhum número para a localizar e essa circunstância fazia-me sentir totalmente desamparada.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
chamada]

Papiro do dia (198)

«Muitas vezes, sentia medo e, para me tranquilizar, apetecia-me ir procurar a minha mãe, mas perturbaria o seu trabalho. Hoje, estou certa de que não se teria zangado, porque, na noite em que foi buscar-me ao comissariado das Grandes-Carrières, não me dirigiu nenhuma crítica, nenhuma ameaça, nenhuma lição de moral. Caminhámos em silêncio. A meio da pont Caulaincourt, ouvia-a dizer numa voz descontraída: “pobre” pequena”, mas perguntei-me se se dirigia a mim ou a ela própria. Esperou que me despisse e me deitasse para entrar no meu quarto. Sentou-se na cama e permaneceu em silêncio. Eu também. Acabou por sorrir. Disse-me: “Não somos muito faladoras…”, e fixou-me nos olhos. Era a primeira vez que o seu olhar ficava tanto tempo preso no meu e a primeira vez que me apercebia de que os seus olhos eram muito claros, cinzentos, ou de um azul deslavado. Azul acinzentado. Debruçou-se e beijou-me na face, ou antes, senti os seus lábios furtivamente. E aquele olhar sempre fixo em mim, aquele olhar claro e ausente. Apagou a luz e, antes de fechar a porta, disse-me: “Trata de não voltar a fazer a mesma coisa.” Creio que foi a única vez que se estabeleceu um contacto entre nós, tão breve, tão desajeitado e todavia tão intenso que lamento não ter manifestado, nos meses que se seguiram, um impulso em direcção a ela que tivesse provocado esse contacto. Mas nós não éramos, nenhuma das duas, pessoas exuberantes. Talvez a minha mãe demonstrasse à minha frente uma atitude aparentemente indiferente por não alimentar ilusões a meu respeito. Pensava com certeza que não havia grande coisa a esperar, uma vez que eu era parecida com ela.»
[Patrick Modiano, No Café da Juventude Perdida; trad. Isabel St. Aubyn, ASA, Abril 2009;
espelho meu]

14 de março de 2012

A luz vem do alto


... se não puder, escreva de cócoras

13 de março de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«E eu deixei-me ficar às escuras, de pé, encostado à janela, a contemplar a fachada escura. Dir-se-ia que era a gare desactivada de uma cidade de província.»
(Patrick Modiano)
[gare]

Nem sempre a lápis (267)

A pintura é afónica e a escrita é sonora; musical, às vezes. Quando não a arrumam, as palavras são a partitura.

[atril] 

Papiro do dia (197)

«Uma livraria e papelaria do boulevard de Clichy permanecia aberta até à uma hora da manhã. Mattei. Um simples nome na fachada. O nome do proprietário? Nunca me atrevi a fazer a pergunta ao homem moreno que usava bigode e um casaco príncipe-de-gales e estava sempre sentado a uma secretária, a ler. Os clientes interrompiam-lhe a leitura para comprar postais ou blocos de papel de carta. À hora em que eu lá entrava, quase não havia clientes, a não ser, às vezes, algumas pessoas que saíam do Minuit Chansons, ao lado. Em geral, encontrávamo-nos sozinhos na livraria, eu e ele. Na montra, estavam sempre expostos os mesmos livros, que percebi rapidamente serem de ficção científica.
À direita, nas prateleiras perto da montra, viam-se livros em segunda mão consagrados à astronomia. Saltara-me à vista um deles, de capa cor de laranja meio rasgada: Voyage dans l’infini. Ainda o tenho. No sábado à noite em que quis comprá-lo, era a única cliente na livraria e quase não se ouvia o barulho do boulevard. Através da montra, viam-se alguns anúncios luminosos e mesmo o azul e branco dos “Mais Belos Nus do Mundo”, mas pareciam tão longínquos… Eu não me atrevia a incomodar aquele homem que lia, sentado, de cabeça baixa. Fiquei calada uns bons dez minutos, antes de o ver voltar-se para mim. Estendi-lhe o livro. Ele sorriu: “É muito bom. Mesmo muito bom… e Voyage dans l’infini…” Preparava-me para lhe pagar, mas ele ergueu o braço: “Não… não… Dou-lho… E desejo-lhe uma boa viagem…”»
[Patrick Modiano, No Café da Juventude Perdida; trad. Isabel St. Aubyn, ASA, Abril 2009;
regresso]

11 de março de 2012

10 de março de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia



Às vezes, lá calha...

«Sonhava com um imenso registo onde fossem apontados os nomes dos clientes de todos os cafés de Paris nos últimos cem anos, com a menção das respectivas chegadas e partidas. Era perseguido por aquilo a que chamava “os pontos fixos”.»
(Patrick Modiano)

Nem sempre a lápis (266)

Sento-me à espera que o fim do dia justifique o gesto adiado de ligar o candeeiro; há muito acesas as luzes nos prédios em volta. Ler devagar, escrever com a demora de quem caminha – ela guardava o livro contra o peito, reparei no olhar.

Papiro do dia (196)

«Certa noite, à mesa de Tarzan, acendeu um cigarro e fiquei impressionado pela delicadeza das suas mãos. E acima de tudo, pelas unhas brilhantes. Pintadas de verniz incolor. Este pormenor corre o risco de parecer fútil. Sejamos então mais sérios. Para tal, importa fornecer alguns pormenores sobre os clientes habituais do Condé. Tinham, pois, entre dezanove e vinte e cinco anos, excepto alguns clientes como Babilée, Adamov ou o Dr. Vala, que rondavam os cinquenta, mas a sua idade não contava. Babilée, Adamov e o Dr. Vala eram fiéis à sua juventude, àquilo a que podíamos chamar “boémia”, um termo belo, melodioso e antiquado. Procuro “boémio” no dicionário: Pessoa que vive uma existência vagabunda, sem regras nem preocupações com o dia seguinte.»
[Patrick Modiano, No Café da Juventude Perdida; trad. Isabel St. Aubyn, ASA, Abril 2009,
flaneur]

8 de março de 2012

limitado à existência:
Gato Vadio (Porto)

7 de março de 2012

Breve interlúdio musical


«Um jovem artista português, Alexandre Farto, usa explosivos para criar esculturas e retratos em paredes de prédios antigos de Lisboa e outras cidades da Europa.»

Organizem-se


JORGE PINHEIRO
Realmente Real
Inaugura hoje às 21h00 no Teatro da Politécnica
(7 de Março a 21 de Abril)

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«“Leio”, observou Döblin, “como a chama lê a madeira.”»
(Alberto Manguel)

Nem sempre a lápis (265)

Comecei por olhar para a nespereira e fui apanhando e amontoando um braçado de folhas secas e estaladiças; sem intenção. A tesoura da poda veio a seguir, na continuação da ronda despreocupada pelo jardim a limpar ramos secos. Uma memória perdida sugeriu que fizesse uma pilha, um micado, para secar os gravetos da figueira finalmente desbastada e penteada, há uma semana. Risquei um fósforo e fechei a salamandra; vindo da praia com os cães, nada demais.

Papiro do dia (195)

«Das duas entradas do café, ela utilizava sempre a mais estreita, a chamada porta da sombra. Escolhia a mesma mesa, ao fundo da pequena sala. Nos primeiros tempos, não falava a ninguém, depois travou conhecimento com os clientes habituais do Condé, a maioria dos quais tinha a nossa idade, entre dezanove e vinte e cinco anos, diria eu. Às vezes, sentava-se nas suas mesas, mas em geral, mantinha-se fiel ao seu lugar, bem ao fundo.
Não tinha hora certa para chegar. Podia encontrar-se lá de manhã muito cedo. Ou então surgir por volta da meia-noite e ficar até à hora do encerramento. Era o café do bairro que fechava mais tarde, juntamente com o Bouquet e o Pergola, e o que tinha a clientela mais estranha. Com o tempo, pergunto-me se não seria precisamente a sua presença que conferia ao local e às pessoas aquela estranheza, como se as tivesse impregnado do seu perfume.
Suponhamos que tínhamos sido transportados para ali de olhos vendados, instalados a uma mesa, libertos da venda e deixados à-vontade durante alguns minutos antes de responder à pergunta: Em que bairro de Paris nos encontramos? Talvez bastasse observar os vizinhos e ouvir as conversas para adivinhar: Nas imediações do carrefour de l’Odéon, que continuo a imaginar sempre nostálgico debaixo da chuva.
Certo dia, um fotógrafo entrou no Condé.»
[Patrick Modiano, No Café da Juventude Perdida; trad. Isabel St. Aubyn, ASA, Abril 2009]

6 de março de 2012

5 de março de 2012

«Rumor Branco»

O primeiro e o último de Almeida Faria

4 de março de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«- A minha produção é limitada. Como dizia T. S. Eliot:
“O poema pode esperar.”»
(Bruce Chatwin)

«É bom trabalhar nas Obras» (105)

«Uma tarde, enquanto procurava o meu elástico para o cabelo, assomei, quase sem me dar conta, ao espaço que havia entre o chão e o colchão da cama dela. Então, descobri um dos seus melhores esconderijos. Encontrei ali um saco de lichias, completamente estragadas, que tinha trazido para casa três semanas antes, uma caixa de bolachas com velhas fotografias de família e uma embalagem de chocolates belgas que, apesar do seu aspecto ainda saudável, não me atrevi a provar. Outro dos hábitos da avó consistia em anotar num caderno pautado e com capa dura, cada acontecimento do dia-a-dia, por mais insignificante que fosse, e também cada objecto ou alimento que comprava, para ela ou para a casa, sem omitir o peso ou a quantidade. Segundo ela mesma me explicou, fazia assim desde o primeiro dia do seu casamento, em 1935, para que o meu avô nunca pudesse acusá-la de esbanjar o dinheiro. E continuava a fazê-lo agora, onze anos depois da morte do seu marido, por inércia ou por motivos que ninguém conseguiu decifrar. Com ela, aprendi que um obsessivo não é forçosamente alguém com as unhas bem tratadas e um penteado impecável, cuja casa se assemelha a uma montra, mas um ser tenso e quase sempre receoso de que o caos tome o controlo da sua vida e dos seus entes queridos por completo.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito]

Papiro do dia (194)

«Os corpos tinham inchado com o calor e o cheiro era nauseabundo. A minha mãe mandou-me para o meu quarto para eu não os ver. Depois, o oficial cortou-lhes as cabeças e subiu as escadas transportando-as pelos cabelos. E pediu álcool à minha mãe para as poder conservar. Está a perceber, esta agência em Nova Iorque pagava cinco mil dólares por cada cabeça. a polícia queria enviar as cabeças para receber o dinheiro. O meu pai encolerizou-se e obrigou-os a restituir as cabeças e os corpos para ele os enterrar.
A tempestade abrandava. Colunas de água cinzenta abatiam-se no outro lado do vale. A todo o comprimento do pomar de maçãs, alinhavam-se flores de tremoços azuis. Onde quer que fosse que residissem alemães havia sempre flores de tremoços azuis.
Perto do curral, uma cruz tosca de madeira erguia-se sobre um pequeno túmulo. As hastes curvas de uma roseira das pampas floresciam da terra como se tivessem sido fertilizadas pelos corpos ali enterrados. Fiquei a olhar para um falcão cinzento que planava no céu, para a ondulação da erva varrida pelo vento e para a massa de nuvens carmim no horizonte.
O velhote saiu e veio pôr-se ao meu lado.
- Ninguém lançaria uma bomba na Patagónia – disse.»
[Bruce Chatwin, Na Patagónia; trad. José Luís Luna, Quetzal, Novembro 1998;
the medium is the massage]

3 de março de 2012

Contagem decrescente: