31 de dezembro de 2010

«Para viajar deveria bastar-nos o nosso corpo; mas as noites reclamam um agasalho; a chuva uma capa; o banho, um traje limpo; o pensamento, tinta e uma pena. E as prendas que não se podem recusar... As dádivas estorvam os viajantes.»

30 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque e Net fornece um novo dia

... e gostos não se discutem:

Às vezes, lá calha...

«Alto! Façamos uma pausa de conveniência. Os escritores que entendem do seu ofício levam-no com toda a calma que é possível. Pois escrever constantemente fatiga tanto como o trabalho da terra.»

Nem sempre a lápis (115)

Fiquei deslumbrado com a porta do teu quarto. Tacteei a cor, tentei perceber a técnica; directa e no lugar. Apeteceu-me «assiná-la»; talvez te tenhas lembrado do que me tens ouvido assinar, ao dizê-lo. Mas o Sol foi pouco para a poder ver e na última noite, subi os degraus às escuras – impelido pela memória –, esquecido que mandaste fazer o que esteve sempre em falta.

Papiro do dia (17)

«Boas notícias de Hackmuth. Uma outra revista estava interessada em publicar uma versão condensada de As Colinas Perdidas. Cem dólares. Estava rico uma vez mais. Tempo de emendar os erros do passado. Mandei cinco dólares à minha mãe. Chorei ao ler a carta de agradecimento que ela me escreveu. As lágrimas corriam-me pela cara enquanto alinhava uma rápida resposta. Com esta carta enviei-lhe mais cinco dólares. Estava satisfeito comigo próprio. Tinha algumas boas qualidades. Podia imaginar os meus biógrafos a entrevistarem a minha mãe, uma velhinha sentada numa cadeira de rodas: era um bom filho, o meu Arturo, nunca se esquecia de mim.
Arturo Bandini, o romancista. A viver do seu trabalho como escritor. A preparar um novo livro. Um livro formidável. As primeiras críticas são excelentes. Uma prosa notável. Desde Joyce que não se via nada semelhante.»
[John Fante, Pergunta Ao Pó; trad. Rui Pires Cabral, Ahab, Outubro 2010;

28 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A biblioteca que Lenz resgatara e agora arrumava no interior, "no estômago" da sua própria biblioteca, já composta agora pelos seus livros e os do pai, misturados - pois entre estes dois fluxos não havia diferença: ele trazia no corpo a marca do pai e a sua mão parecia ter os sulcos provocados pela arma que o corajoso oficial Frederich Buchmann utilizara na guerra; a biblioteca parecia, então, agora reconstruir-se, recuperar forças por via de uma ciência misteriosa. Lenz, ele sentia isso, era o único verdadeiro filho de Frederich Buchmann: estava a ser cumprida uma necessidade dos próprios livros.»

Nem sempre a lápis (114)

Percorrendo o ritmo com que se movia (move?) o papel dentro da tina de revelação, o tempo dilui as imagens para a memória recuperar o branco. Sujo, aqui e ali, pela ideia, por uma vaga ideia de sabermos que não era assim; talvez nunca tenha sido.

Papiro do dia (16)

«Experimentei começar a escrever e vi que avançava com facilidade. Mas não por força do pensamento, da reflexão. A história avançava por sua livre iniciativa, fluindo como o sangue. Era isto. Finalmente acontecia. Cá vou eu, deixem-me passar, oh céus, como gosto disto, oh Deus como te amo, e a ti, Camilla, e a ti. Cá vou eu e isto é tão bom, tão doce e quente e suave, delicioso, delirante. Pelo rio acima até ao mar, isto és tu e isto sou eu, grandes palavras, pequenas palavras, palavras de toda a espécie, viva, viva, viva!
Qualquer coisa ofegante, frenética, infindável, qualquer coisa que seria grandiosa, que não se detinha, martelei as teclas durante horas, até que aos poucos desceu sobre mim fisicamente, dominou-me, entranhou-se-me nos ossos, encharcou-me, esgotou-me, cegou-me. Camilla! Camilla tinha de ser minha! Levantei-me, saí do hotel e desci Bunker Hill em direcção ao Columbia Buffet.
- Outra vez por cá?
Como uma película sobre os olhos, como uma teia de aranha que me cobrisse por inteiro.
- Porque não?»
[John Fante, Pergunta Ao Pó; trad. Rui Pires Cabral, Ahab, Porto, Outubro 2010;

24 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical


23 de dezembro de 2010

22 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Em vigor a partir de Janeiro

Às vezes lá calha...

«Sai-me da frente», contei-lhe que começava a escrever um livro com esse título; Sai da Frente. Não percebeu, como eu ainda não percebi de que memória caiu; que respiração se oferece.

Nem sempre a lápis (113)

Sabia que o tinha, mas não esperava encontrá-lo ancorado no parapeito da janela do atelier. Faz parte de uma frota de miniaturas, de modelos de barcos, investida na capitania de uma loja de artesanato em Armação, entretanto desactivada. Na medida do possível, sem nacionalidade ou província balnear estampada nas velas, ignorado e ausente o registo e matrícula de qualquer barco engarrafado ou lastrado com fósforos de madeira. Preferia-os com pavilhão de papel de rebuçado e à mesma escala. O moliceiro foi-me oferecido pela Claró, filha de Mário Sacramento, ao tempo vizinha e visita de casa; portas comunicantes. Decorridas décadas de faina a mudar de casa e de porto, ainda conserva apetrechos de bordo com nomes que desconheço e não duvido que sejam mais úteis e reais do que escada e ancinho e pá para despejar a água do casco. Quando o meu olhar se cruzou com a proa altiva e as velas silenciosas, senti a inocência perdida sulcada pelos cisnes da ria; ia com os meus primos e a minha tia na lancha para Aveiro, fomos às compras ao passado.

Papiro do dia (15)

«ÉVORAMONTE, 24DEZ74
O natal. O natal é a estação do ano mais bonita. Da que eu gosto mais. No natal tem frio, amizade... Eu gosto muito do natal. No natal tenho medo. O sol é que tem a culpa. Eu não. Nem as flores do natal, assim. Come-se. No natal há: chá bagaço pãozinho quente açorda erva manteiga tambores viski lenha papagaio água vela rádio marrueco alecrim almofada chuva vento ácido tesão gasolina chouriço costela de porco brazinhas a arder flauta pirum (falam) esquentamento sinos no castelo amizade e muito calor. Eu acho que é a estação mais quente do ano. Você acha que não? Também acho que V. acha que não. É a estação do ano mais verde, o natal. A gente fuma fuma fuma à lareira e põe a perna no tesão. À procura da perna. No natal eu sinto uma coisa a roer cá por dentro de tanto amor. Eu gosto muito do natal, das pessoas do natal - eu gosto muito de boa vontade. Aos homes. À lareira na terra.»
[Jorge Fallorca, A Luva In Love, 1977]

20 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Ele leva livros para uma barraca, depois das dez da noite. Fica encantado com a solidão e o silêncio entre o cheiro a madeira. Uma noite, deu um salto por cima dos livros porque tocou o telefone; a que se tinha enganado no número, continuou a enganar-se todas as noites; e ele, apenas lhe toca com os ouvidos e as intenções.»

Nem sempre a lápis (112)

A luz faltou às sete e um quarto da tarde. Confirmei as horas no telemóvel para ver quantos minutos terei perdido da página e meia do final da revisão de Contos Reunidos. Começou a falhar, a ter quebras bruscas, mais ao fim do dia; fartou-se de avisar que não estava a brincar aos presépios e fui gravando a atenção. Refeito da surpresa de me ver às escuras, levantei-me e fiz o que é hábito neste tipo de circunstâncias; abri a porta para confirmar que havia luz nas escadas, com ela verifiquei o quadro do contador, fui buscar uma cadeira para ver o do prédio, surpreendido com a luminosidade debaixo da porta do direito. No frente, ao meu lado, nem sinais de vida. Enquanto apertava os parafusos da tampa do contador do prédio e pegava na cadeira, com ar comprometido sem saber porquê, ouvi vozes a aproximarem-se pela escada; compreendi que a luz era só para alguns, mas o elevador não estava para ninguém. A trombose paralisou, deixou todo o lado esquerdo e frente do prédio tolhido. Subi à vizinha de cima – já tive a oportunidade de a ajudar a tirar uma peça íntima de cima da minha roupa – e confirmou-me que também estava às escuras; lembrei-me das cuecas. Como fico sem telefone quando falta a luz, numa nova incursão disse-me que já tinha telefonado para a EDP e só desta vez é que percebi que tem um cão; estão explicadas as recentes alterações na rotina dos barulhos, quando leio na cama. Deitei-me no silêncio da escuridão do quarto, interrompido por vozes que distribuíam informação a quem, como eu, as ouvia ofegantes atrás da porta. Imagino os capítulos que perdi até as vozes do décimo andar entrarem em casa com o último; cada uma a reeditá-los, revistos até ao esquecimento.

«É bom trabalhar nas Obras» (60)

«Obrigado ou atraiçoado por mim mesmo a dizer como faço os meus contos, recorrerei a explicações que lhes são exteriores. Não são completamente naturais, no sentido de não intervir a consciência. Isso ser-me-ia antipático. Não são dominados por uma teoria da consciência. Isto ser-me-ia extremamente antipático. Preferiria dizer que essa intervenção é misteriosa. Os meus contos não têm estruturas lógicas. Apesar da vigilância constante e rigorosa da consciência, também ela me é desconhecida. Num determinado momento, penso que num recanto de mim nascerá uma planta. Começo a espreitá-la acreditando que nesse recanto se produziu algo estranho, mas que poderia ter um amanhã artístico. Seria feliz se esta ideia não fracassasse de todo. No entanto, devo esperar um tempo ignorado: não sei como fazer germinar a planta, nem como favorecer, nem cuidar do seu crescimento; apenas pressinto ou desejo que tenha folhas de poesia; ou algo que se transforme em poesia quando olhada por certos olhos. Devo procurar que não ocupe muito espaço, que não pretenda ser bela ou intensa, mas que seja a planta que ela mesma esteja destinada a ser, e ajudá-la a que o seja. Ao mesmo tempo, ela crescerá de acordo com um contemplador a quem não ligará muita importância se ele lhe quiser sugerir demasiadas intenções ou grandezas. Se é uma planta dona de si mesma terá uma poesia natural, desconhecida por ela própria. Ela deve ser como uma pessoa que não sabe quanto irá viver, com necessidades próprias, com um orgulho discreto, um pouco torpe e que pareça improvisado. Ela própria não conhecerá as suas leis, embora profundamente as tenha e a consciência não as alcance. Não saberá o nível e a maneira como a consciência irá intervir, mas em última instância, imporá a sua vontade. E ensinará a consciência a ser desinteressada.
Na verdade, eu não sei como faço os meus contos, porque cada um deles tem a sua vida estranha e própria. Mas também sei que vivem em luta com a consciência, para evitar os estrangeiros que ela lhes recomenda.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
via Nico]

19 de dezembro de 2010

Mas que duas encomendas!

... a cores e vivaços

18 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

(Cá por mim, acho bem; nada de se falar ao tlm na cama com quem não se conhece)

Porque a Net fornece um novo dia

... fitas no Brasil e por cá,
Sebald no papel a partir de Janeiro

Às vezes, lá calha...

Celebraram-se hoje trinta e nove anos que me casei a primeira vez; lembro-me sempre, na boa. A Nico convidou-me para passar o Natal em casa dela, no Monte Alto; e eu aceitei, cheio de curiosidade.

«É bom trabalhar nas Obras» (59)

«As partes da cara da recitadora pareciam não se terem juntado espontaneamente: tinham sido alojadas com a vontade de uma pessoa que compra tranquilamente o melhor em várias casas e depois junta e aloja tudo com gosto e sem se esquecer de nada: estava ali todo o necessário para uma cara. Na casa dos olhos tinha escolhido um par grande, de cor azul e tinha reparado bem se o seu mecanismo estava perfeito; de certeza que os teria experimentado, voltando-os para todo os lados; na casa das bocas tinha escolhido uma de tamanho regular, mas cómoda, e com lábios de um vermelho bastante pronunciado. Como era recitadora, teria posto aqui o máximo cuidado: devia emitir palavras claras a grande velocidade, palavras lentas em tons velados, e devia ter grande facilidade de manobra. Realmente, a sua arma mais eficaz era a boca. Num momento em que eu observava a sua estratégia combinada – que era quando ia levantando os braços, semicerrando os olhos e detendo as palavras nos lábios – os meus olhos tinham ficado na sua boca. Ao mesmo tempo que tinha fechado quase completamente a fuga da voz, o lábio superior tinha feito uma onda para um lado da boca e expressava a angústia de um cepticismo romântico. Nos últimos estertores do poema, revirava os olhos para o céu e as pálpebras moviam lentamente as pestanas como escravos a abanar o leque a um rajá. Nas últimas palavras, o lábio superior subia e descia com a lentidão de um pano de cena de um espectáculo. Ao mesmo tempo que a beira dos lábios roçava os dentes, parecia que ela saboreava caramelos amorosos e sentia em tudo aquilo a possibilidade de um prazer ainda mais delicado do que o dos vinhos e das empadas da mesa. De repente, no meio de um dos poemas, ela começou a dar longos passos de um lado para o outro. Como era muito alta e os passos eram para o comprido, tivemos de lhe dar mais espaço. Eu, em vez de correr mais para trás, aproveitei a confusão para me pôr mais à frente. Ela, para ir de um lado para o outro, nem sempre voltava o corpo e caminhava de frente: dava uns passos de lado e as suas pernas pareciam um compasso que se abria e se fechava. Eu tinha deixado de estar suspenso da sua boca e das suas palavras. Os seus passos eram um acontecimento estranho, não só pelo facto de caminhar assim, a meio de um poema, mas porque punha em movimento dimensões e volumes inusuais. No tecido encorpado daquele vestido via-se agitar-se uma ondulação cor de vinho; e essas ondas eram lentas, mesmo nos momentos em que a maré subia de repente e surpreendia a rotação daqueles grandes volumes. Num lado da saia havia uma fila de botões; a ondulação fazia-os aparecer e desaparecer como as cortiças de um aparelho. Os meus olhos lembraram-se de ir até à outra extremidade dela e ver os seus braços, que eram muito brancos e elevavam-se mais acima da minha cabeça; os meus olhos fizeram esse percurso, como se tivessem ido desde o mar até às nuvens.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;

Papiro do dia (14)


«despi devagar o calor de dizer o teu nome
no silêncio do quarto
o aconchego de se ainda voltasses
abre-se em palavras surdas
depois de improviso percorro a solidão
ao espelho
como se, ao olhar muito, te visse
preso na pele dos dedos
inacabado e à deriva nos meus olhos»
[Maria Sousa, Exercícios para endurecimento de lágrimas, Língua Morta, Dezembro 2010;
refresco de Inês Veiga]

16 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Não particularmente óptimo

mas sempre particularmente agradável

Porque a Net fornece um novo dia


Enhorabuena, Enrique

Às vezes, lá calha...

«É bom trabalhar nas Obras» (58)

«Uma noite, depois de ter feito os deveres, li um livro em que um Bandoleiro seguia por um caminho de bétulas. Eu não sabia o que eram bétulas, mas calculava que fossem plantas. Tinha deixado de ler porque estava com muito sono, mas ia para a cama com a palavra bétulas nos lábios. Já deitado, pensava como teriam feito para pôr nomes às coisas. Não sabia se teriam procurado nomes para depois se poderem lembrar delas quando não estivessem presentes, ou se tiveram de adivinhar os nomes que elas teriam antes de as conhecerem. Também era possível que as pessoas de outrora já tivessem nomes pensados e depois os distribuíssem entre as coisas. Se assim fosse, eu teria posto o nome de bétulas às carícias que fizessem a um braço branco: seria a parte volumosa do braço branco e as tulas seriam os dedos que o acariciavam. Então acendi a luz, tirei o caderno e o lápis da pasta carteira e escrevi: “Eu quero fazer bétulas à minha mestra”. Depois tirei a borracha, apaguei e desliguei a luz. No dia seguinte, a mestra enrugava as sobrancelhas sobre algo que eu tinha escrito; e era porque a frase que eu tinha composto na noite anterior não estava bem apagada; então ela lia ao mesmo tempo que perguntava: “Eu quero fazer o quê à minha mestra?”. Lutou um bocado para me arrancar a palavra bétulas; mas quando quis saber por que é que a tinha escrito, embatuquei e ela teve de desistir. Então disse: “Que menino mais estranho, este!”.
Uma tarde comecei a imaginar o que aconteceria se eu acariciasse um braço à minha mestra e estive muito perto de fazê-lo; mas depois pensei que teria sido mais fácil ensaiar uma luta com os punhos do que acariciar a mestra com os dedos.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em revisão final para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

Papiro do dia (13)

«A dureza das minhas circunstâncias empurrava-me para a máquina de escrever. Sentava-me à frente dela, esmagado de compaixão por Arturo Bandini. Por vezes uma ideia flutuava, inofensiva, pelo ar do quarto. Era como um pequeno pássaro branco. Não me desejava mal nenhum. Só me queria ajudar, o amável passarinho. Mas eu golpeava-o, martelava-o com as teclas e morria-me nas mãos.
Não me lembro do que fiz a seguir. Talvez tenha ido visitar o Benny Cohen, que vivia num quarto por cima do Grande Mercado. O Benny tinha uma perna de pau com uma portinhola, onde guardava cigarros de marijuana. Vendia-os a quinze cêntimos cada um. Vendia também jornais, o Examiner e o Times. No quarto de Benny havia pilhas de exemplares da The New Masses. É possível que dessa vez, como de costume, ele me tenha angustiado com a sua negra e terrível visão do mundo futuro. Talvez me tenha admoestado, agitando sob o meu nariz os dedos manchados, por eu ter traído as minhas origens proletárias. Talvez, como de costume, eu tenha saído de lá a ferver de indignação, descendo as escadas poeirentas até ao nevoeiro da rua, cheio de vontade de esganar um imperialista. Talvez sim ou talvez não; não me recordo.
Dirigi-me ao Bairro Mexicano com uma sensação de náusea sem sofrimento. Eis a Igreja da Nossa Senhora, muito antiga, o adobe das paredes enegrecido pelo tempo. Por razões sentimentais, entrei. Apenas por razões sentimentais. Não li Lenine, mas já o ouvi citado, a religião é o ópio do povo. A falar comigo próprio nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Sou ateu: li O Anti-Cristo, que considero uma obra capital. Acredito na transmutação dos valores, meu caro senhor. A Igreja tem de ser eliminada, é o refúgio da burgessia, a classe dos burgessos e dos casca-grossa e dos charlatães de segunda.»
[John Fante, Pergunta Ao Pó; trad. Rui Pires Cabral, Ahab, Outubro 2009;

15 de dezembro de 2010

14 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Na verdade, para dar aos pastéis de toucinho a forma e o sabor que têm, há que ter um forno. O mesmo aconteceu a Maria Pardala quando encheu a Graça do Divor de luto.»

Nem sempre a lápis (111)

No relógio da torre da igreja da freguesia do Sobral, concelho de Mortágua, acabam de se esganiçar as ave-marias electrónicas que antecederam a informação das vinte e uma horas. Fiz-me à estrada no Dia da Mãe – «O 8 de Dezembro é que é», ensinou-me ela –, mas não a vi; não quis importunar a relação íntima com o doutor Alzheimer. Hospedei-me nesta imitação de motel chamado Aldeia Sol, sem sinais do astro-rei e com os néones em regime de poupança; deixei-me guiar pela luz molhada dos salgueiros, nas várzeas. Mas isso, foi durante e até chegar; enganei-me no acesso à CREL e julgo ter passado ao pé do posto de Comandos da Amadora – «Aqui, Jaime Neves; escuto» –, se é que ainda existem, mas lá consegui apontar a mira para o Norte e chegar à Beira. O aquecimento incluído ao telefone e na recepção, começa a cheirar no ar, encostado à janela; parece uma floreira e facilitou mais a instalação, compreendo. Anoto o que não tinha a quem ditar, ao meu lado, nem motivo para recorrer às áreas de serviço, de frente para o espelho de uma mesa encurralada num canto. É objecto que deve dar por todos os nomes e vocação para enregelar o mais acolhedor dos ambientes. Feia, envernizada, na idade do armário. Ontem, sem perceber porquê, lembro-me que adormeci com a boca a saber a leitão; o corpo pedia-me estrada. Amanhã trato do assunto, entre outros adiados até à espontânea vontade de vir à terra com a documentação para abater o trauma daquele estampanço, há quase um ano. Trouxe o mínimo indispensável, coube tudo na mala do portátil: um par de óculos – vejo cada vez pior e muito pior a conduzir à chuva –, a revisão de Felisberto Hernández e John Fante, a medicação nocturna. Como o «café ao lado da Câmara» estava fechado, bebi-o em frente do prédio que me acolheu quatro meses nas águas-furtadas, parece que foi ontem, passei irreconhecível pelo supermercado e abasteci-me do necessário para já não sair. Sabia-me bem uma lareira, eu sei, mas enrolo as pernas numa manta para verificar o carregamento da pen, desintoxicar um pouco da blogosfera, guardar mais um sabonete, sem que ninguém saiba de mim. Gosto de viver às escondidas, de pernoitar em luras impensáveis, de ir às laranjas e ós dióspiros e às romãs; todos os pretextos me assentam bem, quando se trata de dar à sola.

Papiro do dia (12)

«A dureza das minhas circunstâncias empurrava-me para a máquina de escrever. Sentava-me à frente dela, esmagado de compaixão por Arturo Bandini. Por vezes uma ideia flutuava, inofensiva, pelo ar do quarto. Era como um pequeno pássaro branco. Não me desejava mal nenhum. Só me queria ajudar, o amável passarinho. Mas eu golpeava-o, martelava-o com as teclas e morria-me nas mãos.
Não me lembro do que fiz a seguir. Talvez tenha ido visitar o Benny Cohen, que vivia num quarto por cima do Grande Mercado. O Benny tinha uma perna de pau com uma portinhola, onde guardava cigarros de marijuana. Vendia-os a quinze cêntimos cada um. Vendia também jornais, o Examiner e o Times. No quarto de Benny havia pilhas de exemplares da The New Masses. É possível que dessa vez, como de costume, ele me tenha angustiado com a sua negra e terrível visão do mundo futuro. Talvez me tenha admoestado, agitando sob o meu nariz os dedos manchados, por eu ter traído as minhas origens proletárias. Talvez, como de costume, eu tenha saído de lá a ferver de indignação, descendo as escadas poeirentas até ao nevoeiro da rua, cheio de vontade de esganar um imperialista. Talvez sim ou talvez não; não me recordo.
Dirigi-me ao Bairro Mexicano com uma sensação de náusea sem sofrimento. Eis a Igreja da Nossa Senhora, muito antiga, o adobe das paredes enegrecido pelo tempo. Por razões sentimentais, entrei. Apenas por razões sentimentais. Não li Lenine, mas já o ouvi citado, a religião é o ópio do povo. A falar comigo próprio nos degraus da igreja: sim, o ópio do povo. Sou ateu: li O Anti-Cristo, que considero uma obra capital. Acredito na transmutação dos valores, meu caro senhor. A Igreja tem de ser eliminada, é o refúgio da burgessia, a classe dos burgessos e dos casca-grossa e dos charlatães de segunda.»
[John Fante, Pergunta Ao Pó; trad. Rui Pires Cabral, Ahab, Outubro 2009]

13 de dezembro de 2010

«Não me vou deixar apanhar por tentações biográficas, a memória, os mitos que as culturas, marginais ou não, parecem querer que eu adopte. Não sou um símbolo da imaginação alheia.»

12 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A luz do sol no céu,
o sumo do sol na minha barriga.»

«É bom trabalhar nas Obras» (57)

«Rodeada por uma sebe quase com dois metros, aquela casa fora o primeiro sintoma de que tinha havido uma mudança depois "daquilo da lotaria". Eram só sons: um bola a bater na rede de uma raqueta, risos e suspiros de cansaço que pareciam anunciar alegria ao jantar, twist na praia, outro mundo atrás de uma enorme vidraça que um dia teria de atravessar sem violência, uma intuição de que a vida podia ser detida e aproveitada no preciso momento. Uma intuição remota. E equivocada. Os habitantes da casa eram os Codina. E os Codina e as suas actividades eram debatidas no lar dos Losada como se lessem títulos de jornal. "Os Codina estiveram na festa dos Grajal." "Os filhos dos Codina vão passar o Verão em Inglaterra." "A filha dos Codina casou-se." "Os Codina estão arruinados." "Os Codina divorciaram-se." Os pormenores do caso escaparam a Ignacio por manifesta falta de interesse, mas não deixou de sondar por entre os ciprestes. Quando todos tiveram de partir, um boxer acorrentado que, segundo imaginava, nenhuma das duas partes queria, uivava nos momentos de fraqueza e puxava a corrente com raiva. Quando conseguiu soltar-se, também se foi embora. O encarregado da sua alimentação, o porteiro de um edifício próximo, veio um dia e não viu ninguém, arrancou dois candeeiros do jardim, meteu-os num saco de plástico amarelo e desapareceu para sempre. Ignacio começou a colar-se àquela ruína familiar e passeou-se pelo campo de ténis abandonado, pôde palpar a decadência da rede e dos traços brancos que delimitavam o campo, como a piscina se enchia de água esverdeada. Por vezes, quando explorava aquele jardim, um telefone uivava no interior da vivenda. Assustava-se. Quando o silêncio voltava, sentado nos degraus de terra que conduziam ao que tinha sido uma ampla vidraça e, talvez, ao salão que agora permanecia enclausurado por uma dissuasora persiana de madeira escura, punha-se a desenhar detalhes da casa e do jardim: os telheiros, o campo de ténis, a escada da piscina. Era o seu lugar de retiro. Em dez anos, ninguém tinha comprado a casa e a única referência quanto à propriedade eram comentários do seu pai sobre a irresponsabilidade, o abandono e a saúde pública. Ultimamente, Ignacio regressava aos restos saqueados, a grade ferrugenta tombada como um ferido de morte sobre o campo de ténis esquartejado, a terra abandonada e o matagal demente do que fora um jardim; ainda pensava que se podia continuar a deter o tempo, nem que tivesse de ser em solidão, que não teria de ir para nenhum sítio, nem ficar, era simples pensar que os risos e o som elástico permaneciam ali.»
[Francisco Casavella, Um Anão Espanhol Suicida-se em Las Vegas; em tradução para a Minotauro;

Papiro do dia (11)

«Agora, Fabris quis saber tudo. Se Tonio tinha notícias deles todos, que lhe dissesse, que lhe contasse tudo com todos os detalhes, que não se importasse de o magoar; tinha ouvido tantos rumores tristes ao longo dos anos, que agora preferia saber de uma vez por todas o que lhes tinha acontecido, em vez de continuar a imaginar coisas atrozes, histórias horríveis. Quem é que ainda estava vivo? Quem é que tinha morrido? Quem é que fora, como ele, para o exílio, ou, melhor dizendo, para o estrangeiro, porque exílio parecia prever o regresso, e ele, Fabris, sabia que um regresso não era possível; para o estrangeiro, então, inventando novas vidas, talvez sem querer recordar todo aquele mundo que tinham deixado para trás, todos aqueles lugares reduzidos agora a postais, velhas fotografias e desactualizadas agendas de telefones já fora de uso, a desmemoriadas listas de nomes de todos aqueles que havia tanto tempo tinham sido seus amigos, nesse passado ilusório quando eram todos jovens, quando eram tão diferentes de como eram, sem dúvida, em adultos, quando diziam coisas que agora, séculos depois, soavam absurdas, ridículas, melancólicas?
- Pára, homem – respondeu-lhe Tonio, levantando a mão. – Conta-me tu um pouco as tuas aventuras. Lembra-te de que não sei nada do que andaste a fazer.»
[Alberto Manguel, O Regresso; trad. Miranda das Neves, Teorema, Agosto 2009]

10 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Os escritores fazem as literaturas nacionais e os tradutores fazem a literatura universal. Sem os tradutores, nós os escritores não seríamos nada. Estaríamos condenados a viver fechados na nossa língua.»

Nem sempre a lápis (110)

Quanto mais me detenho a observá-las e a rememorá-las, mais fascinado me sinto pelas estantes da Babel na livraria da Rua António Augusto de Aguiar; não conheço, ainda não vi os outros espaços. A Guimarães na Rua da Misericórdia, que já foi a rua de acesso ao Mundo e como exemplo que me é mais próximo; só de relance, a meio de uma conversa vadia e esfomeada. Fascinam-me quando vistas, sobretudo pelo lado de fora das paredes de vidro. Erguem-se em andaimes de verguinha de ferro, com a ponta rematada por um pé-de-cabra, que suportam as pranchas de madeira em altura, travadas com cavilhas dobradas como só um trolha as sabe pregar, para que os livros e as edições levantem o edifício; a Obra em construção. Não sei se repararam, mas evitei, deliberadamente, a denominação corrente para não contaminar o exercício rudimentar com a intrusão de pedreiros; livres ou não. A primeira vez que as vi, estimulado pela proximidade com o Centro de Arte Contemporânea, e, subitamente actualizados os anos em que não nos vimos, ainda perguntei ao Delfim Sardo se andava por ali a mão dele; o que seria perfeitamente natural, ter recorrido a um escultor, a um arquitecto, para as conceber. Mas não; salvas as excepções às regras dos ofícios, os escultores decoram e, nos melhores casos, complementam os espaços planificados pelos arquitectos nos estiradores. Perspectiva possivelmente académica e desactualizada pelo imediatismo virtual a três dimensões. A localização, a implantação nas sapatas visível através das paredes de vidro, das estantes da Babel cria equívocos apressados, aculturados, com a arte povera, é certo; mas as esculturas do acervo do Centro de Arte Contemporânea, como as de qualquer outro, são inúteis até ao formato de catálogo, de trabalho monográfico, entre a livraria e a biblioteca.

Papiro do dia (10)

«Não queria voltar. Melhor dizendo, desde o dia em que tinha posto os pés em Roma pela primeira vez, jurara que aquela outra cidade que tinha sido a sua durante toda a infância, toda a juventude, pertenceria dali em diante ao passado, ao vivo alguma vez mas já não vivo, como Pompeia, a do Vesúvio, não a do tango. Não queria converter-se num desses exilados que, cada tarde, sentados à mesa de um café da moda, vão melhorando a cidade abandonada com entusiasmo de urbanistas, ampliando as ruas, reparando os passeios, ocultando a sujidade e a fealdade por detrás de fachadas de cores estridentes. Uma vez, tinha ouvido um desencantado professor de Literatura Venezuelana comparar a sua Pagateta natal à Veneza dos anos de glória, porque, dizia o académico, “um dia, os nossos pântanos, agora, é certo, imundos, verão levantar-se neles palácios mais luxuosos do que os do doge e abrirem-se canais mais românticos do que os do Canaletto”. Tal nostalgia pré-fabricada não atraía minimamente Fabris.»
[Alberto Manguel, O Regresso; trad. Miranda das Neves, Teorema, Agosto 2009]

9 de dezembro de 2010

8 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vez, lá calha...

«Enquanto isto acontece, muitas imagens se sobrepõem. Muitas imagens e há música. Mais do que uma música. Algumas músicas tocadas repetidamente.
Neste lugar, cruzam-se esferas, orlas incendiadas de retornos.
Neste lugar, existem raptos e passeios. Há coisas, aqui, que continuamente se devolvem à vida. Dívidas de jogo. Pactos com o passado.»

Aprender a envelhecer ao longo da escrita

Cada vez que ouço alguém chamar, alguém dizer «senhor Fallorca», a minha memória volta-se logo para o lado, catraia; mas o meu avô não está ali.

Papiro do dia (9)

«O senhor Matias tem uma almuinha mesmo à saída de Santa Rita, perto da linha-férrea que atravessa o sotavento algarvio, e nela cultiva cebolinhos, pimenteiros e tomateiros. Mas o seu grande orgulho são as oitenta e duas belas laranjeiras que ajudou a criar e hoje cada laranja sua quando calha também faz versos.
E quem chega a Cacela passa obrigatoriamente por elas. E quem olha para o lado de onde sopra o vento, sabe como elas mostram o tempo em que são moças ardidas.
Injustiçado e lutador, o senhor Matias sabe bater o coração atrás das suas oitenta e duas árvores e descobre a solução: na primeira fila, mesmo junto à estrada, só planta as laranjeiras mais audazes e as que sabem morder destemidamente quem se aproximar; nas outras filas ficam as que se riem em voz alta.
Poeticamente, foi o que fez. Ao que parece, do tamanho de um ramo de laranjeira é a coragem do senhor Matias.»
[Carlos Mota de Oliveira, San Pedro de Atacama; Fenda Edições, Lisboa Março 2006;

6 de dezembro de 2010

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

... quando a sorte não penetra, três na peida
... li mesmo agora no livro das caras com o seguinte texto: “A &etc, que nem computador tem, passou a ter um blogue – principalmente para poder chegar a quem procura os seus livros e, muitas vezes, se esbarra com um [falso] «está esgotado» [que na verdade quer dizer, em 90% dos casos, «não temos em stock/na base de dados e não me apetece ligar para a distribuidora a perguntar se existe em armazém»”

Às vezes, lá calha...

«Sempre que saía da escola, esgueirava-se por aquele portão, até sentir o horizonte onde havia letras.
Era esse o segredo.
Aí, sentia-se bem, num mundo sem cor nem pessoas, onde a inexistência a levava longe, lá muito longe, onde o olhar repousa no tempo e a solidão não cabe.»

Nem sempre a lápis (109)

De repente, numa pausa de leitura, ao fechar o livro reparei que o comboio se tornou uma presença, pelo menos, em quatro capas recentes: O Regresso (Alberto Manguel), Um Pai de Filme (Antonio Skármeta), Os Comboios Vão Para O Purgatório (Hernán Rivera Letelier), Vantagens Em Viajar de Comboio (Antonio Orejudo Utrilla).
Mais distante no tempo e percurso, a capa d’O Velho Expresso da Patagónia (Paul Theroux) alimenta a metáfora.

Papiro do dia (8)

«Perto do Castelo do Mau Vizinho, na estrada que liga Igrejinha a Azurada, há um monte com mais de cem anos e sempre com as mesmas casas caiadas. E lá vivem dezasseis ou dezassete pessoas que há um século ganham a vida a acender o riso dos outros com saltos e acrobacias e outras vezes vestindo-se com pedaços de panos de cores vivas. Xantipa é uma delas e convidou-me a visitá-las.
Um monte que só dá palhaços, dizem em S. Gregório. De facto, apenas ali moram há mais de quatro gerações arlequins, polichinelos, títeres, saltimbancos e bobos.»
[Carlos Mota de Oliveira, San Pedro de Atacama; Fenda Edições, Lisboa Março 2006]