31 de julho de 2012

30 de julho de 2012

29 de julho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Lembrar-me da mortalidade (ou, mais exactamente, a mortalidade a fazer com que eu me lembre dela) é um estímulo útil e necessário.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (303)

Animais domésticos
(1970/1980)


7. Jardins tristes da minha idade – nojentos, breves – atravessados por buracos donde me sopravam o nome.
Pedras sonoras retiradas das aves, depois dos meses, quando regressava ofegante e estúpido da escola. Uma fonte.
Percorri-os todos. Soube-os durante as refeições, prostrado frente à transmutação da estátua em peixe libertino.
As pessoas falavam:
os braços moviam-se com exaltantes movimentos lentos, por dentro das frases assombrosas.
Apercebi-me – ou decidi, já não sei bem – que tinham sido decifradas nos textos velhos
expulsas pela boca de um sexo mudo e irreal.
Aprendi-lhes os gestos desajeitados, a memória branca, o sorriso idiota
como gravuras, figuras pardacentas dos compêndios, devassados por uma inteligência solitária.
Inventei-lhes um nome, uma profissão, uma doença. Dei-lhes buracos onde se pudessem esconder, e realizar as suas funções fastidiosas
onde se desesperassem até à raiva, devorando-se mutuamente. Ou apodrecessem de tédio.
Um dia assaltaram-me o jardim, de dentes cerrados. Os rostos mais inexpressivos e estúpidos do que nunca.
Sentia-lhes a respiração nas minhas costas.
A beleza, pediam-me desencantados, a beleza. – E eu tinha apenas um jardim cheio de pedras e imaginação à hora das refeições.
Então, o peixe libertino voltava à sua primitiva inquietação, com um braço esticado de dentro da estátua.
O meu nome encravava-se nos buracos, enquanto as aves grasnavam alto, sobre a voz petrificada da população.
O remorso – ensinaram-me durante as refeições – é um jardim invadido pela respiração das pessoas.

Papiro do dia (244)

«Quem nada teria para confessar era o meu tio-bisavô, primeiro porque era incapaz de se lembrar de alguma coisa de que tivesse de se arrepender, e o seu critério de bondade vinha do que teria ou não feito de que se pudesse culpar; depois porque eu próprio, que dele não sei mas do que o dia e a circunstância da morte, não encontro memória de coisa alguma que me possa servir para dizer se era bom ou mau, embora possa acrescentar que a sua atitude para com os caseiros seria nefasta, extorquindo-lhes o mais que podia, e tratando-os com a sobranceria do proprietário que não aceita que lhe venham dar um carro cheio de alfarroba quando o que devia ser era dois carros, e a culpa disso era de quem a apanhou, que ou não fez o trabalho como devia ser ou roubou metade da colheita, e as acusações caíam sobre o homem que de nada se podia defender, de acordo com uma regra que fui encontrar no livro de Politzer, em termos teóricos, e depois procurei adaptar à realidade portuguesa, escrevendo apontamentos avulsos em cadernos que comprava em Paris na Joseph Gibert, no número vinte e seis do Boulevard St-Michel, e onde o pautado francês me servia para disciplinar o pensamento numa escrita de letra minúscula, quase hieroglífica, que tinha também o objectivo de não ser lido pelo tipo sentado na mesa ao lado, no café, que podia bem ser da polícia política e vigiar que nada se passava de anormal à sua volta, como de resto nada se podia passar de anormal em todo o país.
A dúvida que ainda tenho é saber se continua a passar-se alguma coisa no país, mesmo que tenhamos passado por uma revolução, por uma contra-revolução, e por marés em que direita e esquerda vão mantendo a ilusão de um ciclo lunar, umas vezes com a ideologia mais alta, e outras, como agora é o caso, com a ideologia mais baixa, deixando ver na areia da política todo o lixo que os petroleiros vão limpando dos seus depósitos, ao longo da nossa memória do que foi a revolução, que já foi, Deus a tenha em bom recato, e aos livros subversivos também, que hoje já não valem nada, nem sequer em feiras de alfarrábios.
Ora o que eu sei é apenas isto:»
[Nuno Júdice, O anjo da tempestade; Dom Quixote, Outubro 2004]

28 de julho de 2012

26 de julho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Era feliz na companhia de si próprio,
desde que soubesse quando essa solidão terminaria.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (302)

Animais domésticos
(1970/80)


5. Era uma casa ao contrário, habitada por árvores que cresciam na sala, e mães religiosamente guardadas dentro do seu significado inquieto.
Os tecidos atravessavam os corredores velozes. Ou as cadeiras davam luz nas paredes, quando as mães se interrogavam sobre a ilha:
um lugar silenciosamente violento, poisado sobre a água como um retrato de infância, de onde emergiam vozes no início das estações.
A casa inteira escutava as profecias da ilha. As mães sentavam-se em círculo e pariam instrumentos de música ou suicídio, enquanto as portas se abriam com estrondo para as árvores públicas.
E vinham notícias aterradoras durante as refeições:
parques abertos nos livros novos; uma cidade incendiada por um gesto magnífico; um país dentro da boca de uma criança; ou pequenos crimes domésticos.
Depois, voltava tudo ao princípio:
os inquilinos fitavam-se ferozes, seguindo-se a fuga em massa para a praia, que tinha o dom de se transformar em espelho.
As aves frequentavam então as árvores, que agora ocupavam a casa toda, e escreviam nas paredes nomes inexistentes e acontecimentos históricos, por entre intenso colorido.
As mães nunca mais voltaram da praia, que tinha dado lugar a uma casa azul, com as portas e as janelas fechando-se com estrondo, sempre que uma ave vinda da ilha procurava as árvores.

[mais por aqui]

Papiro do dia (243)

«O meu companheiro de mesa – um colega bastante obscuro, que redigia as notícias policiais, ou políticas?, num dos vespertinos do lugar – prevenia-me de um perigo verdadeiramente assombroso que no prazo de poucas horas cairia sobre mim. Suspeito que por um instante perdi a consciência e tive a ilusão de flutuar no ar. Talvez me tenha assustado.
Não era para menos. Na minha qualidade de nosso enviado especial (um prestigiado talismã que me protegia contra todos os perigos, segundo percebi), eu tinha chegado na semana anterior, com a consabida missão de escrever uma série de artigos que dia a dia informassem o público portenho sobre aquelas festas do centenário da independência, filhas inequívocas da grosseira vontade de maravilhar o mundo. O país tinha-se vertido para a capital, juntamente com os seus desfiles e demais pompas do Governo, as suas conjecturas e sem dúvida fantásticas reservas de folclore, de superstição e de taumaturgia: o sonho pitoresco, o pesadelo vivo, que desde quem sabe quando dorme a selvática montanha, enquanto na quase urbana periferia um capataz vigia com olhos espevitados.
Tinha-se escapulido. Tentei dominar os nervos, pois não me restava outra alternativa a não ser enfrentar a situação; como quem diz, enfrentá-la sozinho. Comparei o meu estado de ânimo com o de um suicida que tivesse engolido um veneno cujo efeito letal haveria de acontecer horas depois. Dei razão a Orduño; essa penosa detenção que me ameaçava na volta equivaleria a despertar por fim de uma vida a fazer-me de engraçado com letra impressa.»
[Adolfo Bioy Casares, O herói das mulheres; trad. David Machado, Cavalo de Ferro, Maio 2008]

25 de julho de 2012

«A vida é uma soda.»
(Fócrates)

24 de julho de 2012

23 de julho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

más que las Obras Completas de su esposo.»

Às vezes, lá calha...

«O amanhecer; a manhã, o meio-dia e a noite, sempre os mesmos; mas com a diferença do ar. Lá, onde o ar muda a cor das coisas; onde a vida corre como se fosse um murmúrio; como se fosse um puro murmúrio da vida...»
(Juan Rulfo)

Nem sempre a lápis (301)

Animais domésticos
(1970/80)


3. Uma criança é azul dentro do nome. Alimenta-se de flores e varandas ocupadas pela memória da mãe. Durante a refeição dão-lhe temas para se entediar no quarto, para se suicidar nos jardins da infância.
A terra queda-se em muda homenagem e as ruas movem-se para um lugar de espaços verdes e imaginações frenéticas.
A água corre. Tudo dá flor nos objectos sangrentos. A casa inteira dedica-se à suprema tortura das aulas. –
A criança é um incêndio atrás do prato de sopa.
Fecha-se no quarto e apercebe-se que está nua. Descobre estupefacta o sexo, que o espelho devolve com insistência. O quarto é uma flor venenosa, onde a criança se masturba, atónita.
Depois abre a janela e canta:
cantará assim pela vida fora, à janela, como um crime cheio de ternura.

[mais por aqui]

Papiro do dia (242)

«Pedro Páramo ficara sem qualquer expressão, como se estivesse ausente. Na cabeça, os pensamentos sucediam-se sem se alcançarem ou sem se chegarem a juntar. Por fim, disse:
- Estou a começar a pagar. Mais vale começar cedo, para acabar depressa.
Não sentiu dor.
Quando falou às pessoas reunidas no pátio para lhes agradecer a presença, abrindo caminho à sua voz por entre o choro das mulheres, não perdeu nem o fôlego nem as palavras. Depois, ouviu-se apenas o resfolegar do potro alazão de Miguel Páramo.
- Amanhã mandas matar aquele animal para que não continue a sofrer – ordenou a Fulgor Sedano.
- Está bem, dom Pedro. Percebo. O pobre animal deve sentir-se desolado.
- Concordo, Fulgor. E já agora diz às mulheres que não façam tanto escândalo, é demasiado alvoroço por causa do meu morto. Se fosse delas, não chorariam com tanta vontade.»
[Juan Rulfo, Pedro Páramo; trad. Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues, Cavalo de Ferro, Abril 2004;
carpideiras]

22 de julho de 2012

Revistas as provas finais

e encaminhado para a gráfica (Setembro)

20 de julho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

«- Eis como gosto de marcar o espaço: com um carimbo.
- Que belo, esse seu instinto de domínio.
- Marcar um território como se marca uma vaca, bem no dorso e com muita força. Uma marca que nunca mais saia.
- Portanto Vossa Excelência, dono e proprietário e senhor e chefe e etc., no fundo, pois então, Vossa Excelência, dizia, como dono de um território, decide marcar o espaço que lhe pertence com um carimbo, é isso? Marca o espaço como se marca uma vaca.
- Exacto. Até pensei mesmo em assinar o espaço. A minha assinatura, o meu belo nome, num canto do espaço que me pertence. Que lhe parece?
- Parece-me inovador. Portanto, em vez de cercas e arame farpado, Vossa Excelência assina, por assim dizer, o chão que lhe pertence.»


Às vezes, lá calha...

«Envelhecer e distrair-se (já se sabe) é a mesma coisa.»
(Adolfo Bioy Casares)

Nem sempre a lápis (300)

Animais domésticos
(1970/80)


1. Aprendo devagar os lugares que o sono afunda. O turbilhão verde da minha louca infância, lugar alto que as estrelas consomem nas constelações da água. Escrevo com os olhos fechados. A escrita é redonda no texto circular. Atenta, a população debruça-se sobre as refeições, como um alquimista bêbado.
Ah, deixem-me passar.
Os textos respiram sobre a mesa. Uma casa explode algures, na beira alta, como uma morte inteligente dentro da infância.

Papiro do dia (241)

«Da bica, as gotas caem uma a uma. Ouve-se, saindo da pedra, a água clara que cai no cântaro. Ouve-se. Ouvem-se barulhos; pés que raspam o solo, que caminham, que vão e vêm. As gotas continuam a cair incessantemente. O cântaro transborda, fazendo rolar a água sobre um chão molhado.
“Acorda!”, dizem-lhe.
Reconhece o som da voz. Tenta adivinhar quem é; mas o corpo afrouxa e cai adormecido, esmagado pelo peso do sono. Umas mãos puxam as cobertas, prendendo-as e, sob o seu calor, o corpo esconde-se à procura da paz.
“Acorda!”, voltam a dizer.
A voz sacode os ombros. Faz endireitar o corpo. Entreabre os olhos. Ouvem-se passos que se arrastam… E o pranto.
Então ouviu o pranto. Isso acordou-o: um pranto suave, fino, que talvez por ser fino conseguiu atravessar o emaranhado do sono, chegando ao lugar onde se aninham os sobressaltos.»
[Juan Rulfo, Pedro Páramo; trad. Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues, Cavalo de Ferro, Abril 2004]

19 de julho de 2012

18 de julho de 2012

«El paseante pasa de conmovedoras reflexiones sobre su estilo de vida a lucidas e irónicas criticas sobre los editores, la literatura de la época y de su música. Walser nos dirá como los editores siempre se creen con derecho a dar consejos en cuanto a como escribir y que “ese seductor canto de sirena ha arruinado ya mas de una naturaleza débil” y en cuanto a la literatura considera que nunca llego a la cumbre como escritor ya que a diferencia de Goethe, “… tenia muy poco instinto social. Actué casi de espaldas a la sociedad… me entregué demasiado a mi personal placer. Si, es cierto, tenia condiciones para convertirme en una especie de vagabundo, y a penas me resistí a ello. Este aspecto subjetivo irritaba a los lectores.”»





17 de julho de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O que se passa quando chega a primeira geração nascida depois de nós e para a qual somos mero folclore? Como disse o grande contista irlandês Frank O’Connor, o folclore “nunca esclarece nada”.»
(Julian Barnes)

Papiro do dia (240)

«Para os escritores, o processo de ser esquecido não é claro. “É melhor para um escritor morrer antes de ser esquecido, ou ser esquecido antes de morrer?” Mas aqui “esquecido” é só um termo de comparação, que significa: sair de moda, ficar esgotado, ser desvendado, suplantado, considerado demasiado superficial – ou então demasiado grave, demasiado sério – para uma época posterior. Mas verdadeiramente esquecido, isso é muito mais interessante. Primeiro deixam de nos editar, somos relegados para lugares esconsos da loja do alfarrabista e do website comercial. Depois de um breve renascer, se tivermos sorte, com um ou dois títulos reeditados; pois outra quebra, e o período em que alguns estudantes finalistas em busca de tema de tese, virarão penosamente as nossas páginas, sem perceber por que escrevemos tanto. E por fim as editoras esquecem, o interesse académico desvanece-se, a sociedade muda e a humanidade avança um pouco mais, enquanto a evolução cumpre o desígnio inútil de nos transformar a todos no equivalente de amibas e bactérias. É inevitável. E a dado momento – tem logicamente de acontecer – um escritor terá um último leitor. Não peço comiseração; este aspecto da vida e da morte do escritor é inelutável. Num momento entre o agora e a morte do planeta daqui a seis biliões de anos, cada escritor terá o seu último leitor. (…) A dado momento, também para mim haverá um último leitor. E depois esse leitor morrerá. E se, na grande democracia dos leitores, todos são teoricamente iguais, há uns mais iguais do que os outros.»
[Julian Barnes, Nada a Temer; trad. Helena Cardoso, Quetzal, Maio 2011]

16 de julho de 2012

14 de julho de 2012

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«A inspiração é rara, e os autores têm de contentar-se com o pouco de espírito que o destino clementemente lhes concede.»
(Robert Walser)

Papiro do dia (239)

«Uma história sobre mim e o meu irmão. Quando éramos pequenos, ele punha-me no meu triciclo, vendava-me os olhos e empurrava-me a grande velocidade contra o muro. Foi-me contada pela minha sobrinha C., que a ouviu contar ao pai. Eu não tenho a mais leve recordação e não sei que conclusão tirar. Mas deixem-me que vos dissuada de o fazer. Parece-me ser o tipo de jogo que eu apreciaria. Posso imaginar o meu grito de prazer, quando a roda da frente batia na parede. Se calhar, até sugeri o jogo ou implorei que o repetíssemos.
Perguntei ao meu irmão o que é que achava sobre os nossos pais, como eram e como descreveria a relação entre eles. Nunca lhe perguntara tais coisas e a sua reacção é bem característica: “Como eram? Não tenho uma ideia definida: quando eu era pequeno, essas questões não se punham e depois já era tarde.” Mas aceita a tarefa: acha que eram bons pais, “razoavelmente nossos amigos”, tolerantes e generosos; “moralmente muito convencionais – ou melhor, típicos da sua classe social e do seu tempo”. E continua: “Suponho que o seu traço mais extraordinário – embora na época nada extraordinário – era a total ou quase total ausência de emoção. Não me lembro de nenhum deles se zangar a sério, de ficar assustado ou louco de alegria. Tenho a ideia de que o sentimento mais forte a que a mãe alguma vez se entregou foi uma grande irritação, enquanto o pai era sem dúvida especialista em tédio.”
Se nos pedissem uma lista das coisas que os nossos pais nos ensinaram, eu e o meu irmão ficávamos às aranhas.»
[Julian Barnes, Nada a Temer; trad. Helena Cardoso, Quetzal, Maio 2011;
secrets]

12 de julho de 2012

11 de julho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Se parece nostalgia, é de algo que nunca conheci, o que, admitamo-lo, é a forma mais tóxica de nostalgia.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (298)

Procurava os mais ínfimos vestígios dispersos em cadernos, rasurados, as versões transcritas para o computador, algumas impressas, e arrumava. Pensava arrumar. Era a sua nova ocupação; libertar-se de versões e compilar tudo num memorando a seguir à risca, depois. Oferecia-se a necessidade de não escrever; o reverso da ronha literária, deixar de escrever.
[parting]

Papiro do dia (238)

«Os escritores precisam de ter certas respostas prontas para certas perguntas tipo. Quando me perguntam “O que diz o romance”, tenho tendência a responder: “Diz mentiras lindas e perfeitas, que encerram verdades duras e exactas.” Falamos da suspensão da descrença como pré-requisito mental para apreciar a ficção, o teatro, o cinema, a pintura figurativa. São só palavras sobre a página, actores no palco ou no ecrã, cores sobre um pedaço de tela. Estas pessoas não existem, nunca existiram ou, se existiram, aqueles não passam de meras cópias, simulacros momentaneamente convincentes. Mas enquanto lemos, enquanto os nossos olhos exploram, acreditamos: que Ema vive e morre, que Hamlet mata Laertes, que este homem pensativo em vestes debruadas de pele e a sua mulher vestida de brocado poderiam sair do retrato pintado por Lotto e falar-nos no italiano de Bréscia, no século XVI. Nunca aconteceu, nunca podia ter acontecido, mas nós acreditamos que podia acontecer e que aconteceu. Tal suspensão da descrença não está longe da admissão activa da crença. Mas não estou a sugerir que a leitura de obras de ficção possa sensibilizar-nos para a religião. Pelo contrário – muito pelo contrário: as religiões foram as primeiras grandes invenções dos escritores de ficção. Uma representação convincente e uma explicação plausível do mundo, para mentes compreensivelmente confusas. Uma história linda e perfeita, que encerra mentiras duras e exactas.»
[Julian Barnes, Nada a Temer; trad. Helena Cardoso, Quetzal, Maio 2011;
o próprio]

9 de julho de 2012

8 de julho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


(2 a 15 de Julho: 2.ª a 6.ª, das 9h30 às 19h30; sáb. 9h30 às 17h30
16 de Julho a 31 de Agosto: 2.ª a 6.ª, das 9h30 às 17h30)

Às vezes, lá calha...




«Tive, durante toda a minha vida, tempo de sobra, mais até, demasiado tempo. Desconheço a pressa, repugna-me o cheiro a pânico que detecto no meu suor.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (297)

Eu respiro pelos textos lentos, acossado pelas regras da pontuação. Detenho-me onde não devo – onde a demora não é saudável – a oxigenar as palavras: «Rio Grande», disse ela e só depois, «do Sul.» E ao ouvir, imaginava até onde a imensidão do caudal levou o rio. Não era o sotaque – acho que entoação soa melhor e o itálico também é meu –, não era a entoação que enumerava as águas; via o filho do Vento à solta na pampa e partia.


[mãe com 3 umbigos = grávida de gémeos]

Papiro do dia (237)

«O coala
“O coala é levado às cavalitas pela mãe” e isso parece excelente também aqui nas ruas do México, em que as mães levam os filhos às cavalitas e também na europa os meninos vão às cavalitas e também nas inundações e por vezes nos incêndios e por vezes nos terramotos, é bom sempre este dorso de cavalo que a mãe tem e que permite que os meninos subam às suas cavalitas e pensem que é uma brincadeira o que afinal é desespero.»
[Gonçalo M. Tavares, Canções Mexicanas; Relógio d’Água, Novembro 2011]

7 de julho de 2012

6 de julho de 2012

5 de julho de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Foi a segunda descoberta do olhar – na clorofila não há metáfora.»
(Maria Gabriela Llansol)

Nem sempre a lápis (296)



Não há muito tempo, uns três anos, entretive-me a alimentar o expediente da auto-edição a laser, impressa nas vulgares superfícies da especialidade com tiragens à medida da procura da oferta; da generosidade editorial, digamos assim. Passei semanas apoiado nessas elucubrações, práticas, funâmbulas, inconsequentes. O labirinto das minhas leituras acabava de desembocar num parágrafo de Julio Cortázar em que se refere uma localidade na Escócia, onde vendem livros com uma página em branco perdida algures no volume. «Se um leitor desemboca nessa página quando batem as três da tarde, morre.» Anotei então e acabo de confirmar que me animava e continua a animar, a sobrevivência da impressão; quanto tempo precisará para se transformar num livro em branco e o leitor se salve sem necessitar de ver as horas. Como todas as horas são boas para se morrer, no prazo razoável de sessenta minutos, legendo assim os 2:06 minutos do vídeo clipe e ainda sobra muito tempo.

Papiro do dia (236)

«Ninguém estava à altura de receber-me, nenhuma relação era exacta para me tornar equilibrada, ou útil. No quarto das sombras a luz entrava a jorros por duas grandes janelas da sacada mas eu habitava, não ultrapassava o limiar do corredor que possuía uma passadeira de oleado negro e brilhante porque, diziam, havia um fantasma acocorado à entrada e que, afinal, nada mais era do que, a certas horas do dia, o volume rutilante do sol no oleado. Descobri que se, em vez de me concentrar na sombra do corredor, me deitasse de costas a olhar a mancha rutilante, o meu olhar poderia realizar o caminho inverso da luz e pousar no ramo mais alto da árvore e aprender com esta a produzir clorofila – a matéria do poema.
Essa postura, no entanto, tornou-me malcriada. Eu deveria crescer na direcção do corredor, e estava crescer na direcção da árvore. Estive quase a dar ouvidos a essa voz humana que insistia que eu estava a crescer mal. E, de facto, era uma postura estranha. O meu corpo permanecia deitado,
no chão do quarto,
enquanto o meu olhar aprendia a fazer poemas. Com o tempo, como seria aquele corpo, separado da poesia, ou com esta apenas a botar do seu olhar? Tanto mais que, lá do alto, o poema via tudo de cima e quase nada via do que se passava em baixo, à volta do seu corpo, não sentia a dor que este sentia,
a sua falta de espaço e de movimento,
a pressão exterior que o impelia a entrar no corredor e a ser menina,

escrevia apenas que esse mal era uma metáfora.»
[Maria Gabriela Llansol, Onde vais, Drama-Poesia?; Relógio d’Água, Março 2000;
no chão]

4 de julho de 2012

2 de julho de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


[latoeiro]

Às vezes, lá calha...




«Fugir ao destino do vate. Fugir à mediocridade da autobiografia.»
(Maria Gabriela Llansol)

Nem sempre a lápis (295)

Como havia semanas que não lhe ocorria nada, um escritor decidiu viver um momento muito delicado coincidente com a inevitabilidade desportiva e a agressividade promocional de um grande grupo económico. Estava informaticamente convicto de que a infeliz conjunção bulia com a rotina dos níveis de audiência do blogue de que era o autor, comparando-os com as actividades levadas a cabo entre as duas capitais do país fratricida em que se exprimiam: Golo!, o único grito em uníssono. Metódico e sofrido, verificava o dia e a semana e o mês, no sismógrafo da blogosfera. Não havia dúvida: numa semana, deram-lhe música a Norte e ficou-se por uma exausta centena de visitantes; numa outra, uma manifestação rural no terreiro ao desbarato entre o Iluminismo conduziu a audiência ao previsível açougue. Encontrando-se o escritor no campo que vai dar à praia, não recorre à bula enquanto toma a medicação; espreita a lenta recuperação da gema, da polpa dos seus dedos dos efeitos secundários da concorrência desleal, digamos assim – e o escritor concordou.

Papiro do dia (235)

«___ eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema. Só havia tecidos espalhados pelo chão da casa, as crenças ingénuas de minha mãe. Estavam igualmente presentes as páginas que os leitores haveriam de tocar (como a uma pauta de música), apenas com o instrumento da sua voz. Eu fui profundamente mal desejada e com amor.
- A voz está sozinha – disse minha mãe, ainda eu estava no seu ventre, a ler-me poesia.
- Não por muito tempo – responderam àquela que me iniciava na língua. E eu nasci na sequência de um ritmo.
Eu nasci para acompanhar a voz, a fazê-la percorrer um caminho. De um lado a outro do percurso, não sei o que existe,
o caminho caminha,
eu deslumbro-me quando o tempo se suspende,
e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo.»
[Maria Gabriela Llansol, Onde vais, Drama-Poesia?; Relógio d’Água, Março 2000]

1 de julho de 2012