31 de agosto de 2012




29 de agosto de 2012

Notícias do interior

Rafael e Gustavo (Seyboth Santos Silva) Mallmann Fallorca
(22h55 / 22h57, 28 de Agosto de 2012,
2,450 e 2,600 kgs)
[em actualização]

28 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Estou satisfeito por o meu velho bloco-notas ter desaparecido. Não tenho qualquer desejo de o voltar a ver. Reaparece apenas por vezes como uma espécie de longa nota de rodapé.»
(Saul Bellow)

Nem sempre a lápis (313)

Animais Domésticos
(1970/1980)


Se é certo viajar-se no tempo através da argila, imagine-se a surpresa com que cada um se encontra na olaria.



26. Aconselharam-me o Sul. Disseram: espaços, as aves, a cal. Aprendi depois, também o mar. Devorei o Azul ouriçado de espanto, em cada esquina.
Aconselharam-me o Sul. Disseram-me noutros espaços, que não o das aves, de cal em cal. Talvez eu tenha pensado:
se calhar o mar ouriçado de Azul. Espanto. Voracidade em cada esquina – o Sul,
aconselharam-me: talvez eu tenha pensado demais, em cada azul. Depois:
o mar.


27. A pequena praia limitava-se a um extenso areal ventoso. Num lugar cercado por casas de madeira, as crianças levantavam as cabeças dos avós nos papagaios.


28. Os seus métodos eram outros: as mulheres torciam a roupa, e ele desejava essa pequena humidade –
ser desalojado assim, por um gesto secretamente feminino.
Ou ser cordel, ligar a infância a um papagaio.
Possuir todos os graus da relação.


29. Aqui não se vê nascer o sol, nem pôr-se sobre o mar.
Sentimo-lo passar como uma língua de fogo
doce


30. A minha vontade era possuir-te sobre o mar, vir-me no azul como uma gaivota.


31. Às vezes estou a despir-me e paro a ouvir o vento.
Vocês estão a dormir, e fico nu no meio da sala às escuras, até ouvir só o Vento.
Depois, vou-me deitar.
Dou por isso todas as manhãs.




Uma noite, apenas –
escrevemos sobre a mão uma casa decisiva.
Depois os dedos são uma floresta restituída à árvore.

Papiro do dia (254)

«Para mim, uma inteligente nota de rodapé tem redimido mais de um texto. E eu dou-me conta de como estou agora a usar uma longa nota de rodapé para abrir um assunto sério – mudando num movimento rápido para Paris, para uma suite do Hotel Crillon. Princípios de Junho. Hora do pequeno-almoço. O anfitrião é o meu bom amigo Professor Ravelstein, Abe Ravelstein. A minha mulher e eu, também hóspedes no Crillon, temos um quarto por baixo, no sexto piso. Ela ainda está a dormir. O andar inteiro por baixo do nosso (isto é absolutamente irrelevante, mas de algum modo não consigo deixar de o mencionar) está ocupado neste mesmo momento por Michael Jackson e a sua entourage. Ele actua à noite num qualquer vasto auditório parisiense. Dentro em pouco chegarão os seus fãs franceses e uma multitude de rostos ficará voltada para cima, gritando em uníssono, Mikell Jack-soune. Uma barreira de polícia mantém os fãs à distância. Cá dentro, do sexto piso, quando olhamos para baixo pelas escadas de mármore vemos os guarda-costas de Michael. Um deles está a fazer as palavras cruzadas no Paris Herald
[Saul Bellow, Ravelstein; trad. Rui Zink (a preço silly pelo “DN”)]

27 de agosto de 2012


25 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Até então, eu não fizera a menor ideia do que fossem as “belas letras”. Agora, seguia-se Lenau, Schiller, depois Goethe e Shakespeare, e a pálida ideia da literatura transformou-se em mim numa grande divindade.»
(Hermann Hesse)

Nem sempre a lápis (312)

Animais domésticos
(1970/1980)

Este é o espaço destinado a todos os equívocos, com gente assomando – estridentemente – às colunas por onde se esvai a escrita.
Porque a necessidade deixou de ser travessa e assume-se como gazua.




21. A erva não está cortada, mas olhos verdes viram-na rir. Traduzida depressa para as frases mortas das paredes, depois de um cisne passar.
E quando disse mãe, do outro lado respondeu-lhe a Morte, fotografada pelo olhar horrorizado de uma criança.

As pedras também não morrem.

23. É uma mancha verde correndo pelo campo fora, ou saltando como circunferência de pêlo redondo. Exaltação dos dedos na mão dentro da terra – quentes, quase nunca verticais. Húmidos. Acesos no fim da boca, redondos como mancha verde assustada no pêlo da circunferência. Campos altos, natas mordidas pelas manchas dos frutos verticais. Boca convulsionada, terra da circunferência quente.
É uma mancha verde correndo,
correndo das (nas) mãos.

24. Boca de peixe, com os motores da mãe rugindo na areia –. Arde o peito, arde a memória, tragada pela breve humidade das costas, como uma pedra quente sobre cidades europeias.
Como a respiração das pessoas dentro da boca das outras pessoas.
Aquário onde assisto ao fuzilamento dos nomes, com o fascínio de uma janela entreaberta na puberdade.


25. (...) porque uma praia acordou pouco depois de partirmos. Entretanto, era o deserto queimado –
o teu sangue no musgo das mãos que passam. Ave cinzenta das dunas, quando a voz gela nos ombros que se foram embora.
Por onde ardia, uma árvore rendia-se às águas mortas

– Algeciras é no corpo em frente


Papiro do dia (253)

«E aos poucos, quanto mais eu lia, quanto mais maravilhosa e estranha me tocava a visão sobre os telhados, as ruas e o dia a dia, tanto mais frequentemente surgia em mim, hesitante e opressiva, a sensação de que também eu seria, talvez, um vidente; e o mundo que diante de mim se estendia, aguardava que eu elevasse parte dos seus tesouros, os libertasse do véu do acaso e da mediocridade, e que o assim descoberto, pela força da poesia, o viesse arrancar à destruição, eternizando-o.
Timidamente, comecei a fazer alguma poesia e, aos poucos, fui enchendo alguns cadernos com versos, com projectos e pequenos contos. Eles perderam-se, e provavelmente teriam pouco valor, mas proporcionaram-me grande e sincera excitação e um secreto prazer. Só aos poucos a crítica e a autocrítica se seguiram a estes ensaios, e apenas no último ano escolar surgiu a primeira e indispensável grande desilusão. Eu começara a pôr de lado os meus poemas de principiante e a olhar os meus escritos em geral com desconfiança quando, por acaso, me caíram nas mãos alguns volumes de Gottfried Keller, que eu logo li duas e três vezes seguidas. Vi então, numa percepção súbita, quanto os meus sonhos imaturos estavam longe da autêntica, crua e verdadeira arte, queimei os meus poemas e novelas e olhei sóbria e tristemente o mundo, com o doloroso sentimento de ser um miserável.»
[Hermann Hesse, Peter Camenzind; trad. Isabel de Almeida e Sousa (a preço silly pelo “DN”);

24 de agosto de 2012

23 de agosto de 2012

22 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia



Às vezes, lá calha...




«A natureza incompreensível e esbanjadora havia reunido em mim dois dons contraditórios: uma força física incomum e uma não menor repulsa pelo trabalho.»

Nem sempre a lápis (311)

Animais domésticos
(1970/1980)

19. Os ladrões de imagens ocupam o lado esquerdo da praia, onde uma página se entrega ao vento e são altos, detentores de uma fronte muito plana onde, por vezes, é possível aperceber tábuas e se chove, uma nuvem branca.
Conta-se que se dedicam também ao culto de garrafas muito límpidas, que observam longamente, e enchem de água que esvaziam se o Sol não se assume. É um exercício penoso, executado com gestos sorvidos pelo azul e o clima do mármore.
À noite ficam de pé, de costas uns contra os outros, para repetir o sono.

Papiro do dia (252)

«Uma pessoa que tenha vivido durante dez anos entalado entre uma montanha e um lago, assediada a toda a volta por picos próximos, não esquecerá o dia em que, pela primeira vez, teve por cima de si um céu extenso e, pela frente, um horizonte sem limites. Logo durante a subida, fiquei espantado por as escarpas e superfícies de rocha que tão bem conhecia lá de baixo, me surgirem tão desmesuradamente grandes. E eis que, inteiramente subjugado por aquele momento, cheio de medo e júbilo, via, de súbito, a tremenda vastidão penetrar em mim. Que fabulosamente grande era, de facto, o mundo! Toda a nossa aldeia, perdida agora lá no fundo, era apenas uma pequena mancha clara. Os cumes que de lá de baixo se julgavam bem vizinhos, ficavam a muitas horas de distância.
Comecei então a pressentir que apenas tivera um pequeno vislumbre, que não havia tido ainda uma visão alargada do mundo, e que, lá longe, se erguem montes, e caem, e sucedem grandes coisas de que jamais chegará a mais leve notícia ao nosso isolado buraco de montanha. E logo em mim algo estremeceu como a agulha da bússola, com uma inconsciente atracção poderosa por aquelas grandes distâncias. Só então compreendi também inteiramente a beleza e a melancolia das nuvens, pois via que infindáveis distâncias elas percorriam.
Os meus dois acompanhantes adultos louvaram a minha boa escalada, repousaram um pouco sobre o cume gélido, e riram com a minha alegria desconcertante. Eu, porém, depois de passado o primeiro grande assombro, de alegria e excitação, berrei alto como um touro pelos ares límpidos. Foi o meu primeiro canto, inarticulado, à beleza. Esperava um eco estrondeante, mas o meu grito soou nas alturas calmas sem deixar sinal, como um fraco pipilar. Fiquei envergonhado, e mantive-me em silêncio.»
[Hermann Hesse, Peter Camenzind; trad. Isabel de Almeida e Sousa, a preço silly pelo “DN”]

21 de agosto de 2012

Violação de propriedade


[eram figos, eram; embalados com folhas e tudo]

20 de agosto de 2012

Ferida aberta




19 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Procurei a verdade interior. Esse cogumelo venenoso e colorido
 no fundo da floresta.»
(Ingeborg Bachmann)

Nem sempre a lápis (310)

Animais domésticos
(1970/1980)

17. Levantando-se do fogo dos sonhos este homem tem na mão um pássaro azul – um pardal – e olha para trás do horizonte.
Quando chove, o brilho precipita-lhe o canto. E frutas, ventos, escritas brevíssimas, florescem-lhe junto aos pés, levantados dos caminhos.
É um homem a todo o tamanho da sua alegria e dor.
Um homem exacto e inteiro às portas do ar.

Papiro do dia (251)

«Qual é a verdade sobre o mundo, já que sou incapaz de me compreender a mim mesmo, eu, que vejo, sinto e entendo de mil maneiras diferentes! Tomem como exemplo uma mesa de trabalho, um simples objecto como a mesa onde costumo escrever! Quantas vezes me sentei diante dela ou a toquei, reconhecendo-a, com indiferença; no escuro, já me tenho aproximado dela, tacteando; uma vez desenhei-a numa carta a um amigo, e aí ela correspondia a meia dúzia de traços de lápis; às vezes acontece que me chega o seu odor ao nariz, depois de um longo e árduo trabalho; outras vezes ainda olho-a, admirado, quando surge diante de mim livre de papelada que foi arrumada noutro sítio – uma outra mesa! E quanta coisa mais não se poderia dizer desta simples mesa maciça! Uma quantidade de lenha para aquecer, uma forma que lembra um determinado estilo, um peso como mercadoria a transportar, um preço quando foi comprada, outro preço que terá hoje, outro preço ainda depois da minha morte. Já sobre esta mesa não se vislumbra o fim da lista! Uma mosca vê-la-á de um modo diferente do de um periquito, e será que Gerda a viu alguma vez como eu a vejo? Não sei, só sei que ela conhece o sítio onde eu fiz um buraco no tampo, com o cigarro. Para ela trata-se da MINHA mesa, aquela que tem um buraco feito por uma queimadura; além disso, conhece ainda os seus pés torneados, porque nos seus retorcidos se deposita todo o pó possível e imaginário. Só me apercebi deste facto por seu intermédio, mas em compensação sei o que ela não sabe: a sensação de bem-estar que ela provoca quando nela apoiamos os dois cotovelos, e como um olhar pensativo se prende nos seus veios, e como sobre ela se dorme, pois que algumas vezes adormeci sobre o trabalho, com a cabeça caída para a frente, sobre o tampo.»
[Ingeborg Bachmann, Trinta Anos; trad. Leonor Sá, Relógio d’Água, 1988]

18 de agosto de 2012

16 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Comprou um mapa da cidade numa livraria, para a cidade da qual ele conhecia os odores e sobre a qual nada sabia que valesse a pena saber.»
(Ingeborg Bachmann)

Nem sempre a lápis (309)

Animais domésticos
(1970/1980)

15. Uma mão colhe uma maçã e não sabe como regressar depois ao corpo. Ficámos por saber quanto tempo demora a chuva,
como envelhece um gesto renovado pelo silêncio.
Entretanto, acendes um cigarro e descreves um círculo na areia. Pouco depois uma flor nasce ao contrário, e sentes os dedos cheios de sangue. Contas a história de uma laranja para que ninguém dê por nada, mas as palavras dão-te fruto na boca e aparecem-te manchas pelo corpo. Todo. Dentro em pouco cortam uma cana para uma flauta, que não saberá outro som que o do teu nome enlouquecido.

Papiro do dia (250)

«Despede-se de Moll, correspondendo em calculismo ao aperto de mão calculista, e entra no seu pequeno e velho café. O empregado fica surpreendido, reconhece-o, pobre homenzinho tão amável! E desta vez ele não tem que falar, que apertar mãos, que fazer nenhum esforço; não tem de gastar palavras, um sorriso é o suficiente, sorriem um para o outro como dois imbecis, dois homens que já viram passar muita coisa, anos, pessoas, alegrias, infortúnios, e tudo o que o velho homem quer expressar – satisfação, lembrança – lho demonstra colocando em cima da mesa os jornais que ele aqui em tempos costumava pedir e ler.
Tem de estender a mão em direcção à pilha de jornais, tem essa dívida para com o velhote; e é com satisfação que o faz. Sente aqui finalmente uma certa alegria, sente-se em dívida, mas sem opor resistência.
Põe-se a ler ao azar os títulos, as notícias locais, a página cultural, notícias várias, a secção desportiva. A data não importa minimamente, podia trocar aquele jornal com um de há cinco anos que o resultado seria o mesmo, ele só lê a cadência, a letra inconfundível, a disposição gráfica. Melhor do que em qualquer outro lugar ele sabe o que aqui é tratado em cima, à esquerda, e em baixo, à direita, o que aqui é tido por bom ou por mau, nos jornais. Só aqui ou além é que desajeitadamente se introduziu um novo vocábulo.»
[Ingeborg Bachmann, Trinta Anos; trad. Leonor Sá, Relógio d’Água, 1988;
Sean Ford]

13 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical


(que, como se sabe, começa em Agosto)

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Voltou para a cidade que mais tinha amado, onde tinha pago impostos, lições, propinas e mais umas quantas coisas. Foi para Viena – mas sem ousar pronunciar “para casa”.»
(Ingeborg Bachmann)
[k7]

Nem sempre a lápis (308)

Animais domésticos
(1970/1980)

14. Uma árvore conta uma lenda atlântica num jardim deserto e a magia do vidro atravessa a água.
Do outro lado é um prédio na boca de um cavalo. Porta por onde desapareces depois das refeições. Vozes.
Sob as vozes o sol delira, para que a estátua festeje a infância. A floresta toca o fundo das raízes, num suicídio lento; a madeira dá fruto sob as algas,
o oceano é íngreme, atrás do vento.

Papiro do dia (249)

«Deitou-se no seu compartimento, com a cabeça em cima do casaco dobrado, e pôs-se a pensar. Iria atravessar a Europa naquela cama, acordar dos seus sonhos em sobressalto, tremer de frio quando se aproximasse das montanhas bem suas conhecidas, dormitar, relembrar penosamente. Queria voltar ao ponto de partida, pois já tinha visto quanto bastasse daquilo a que se costuma chamar o mundo.
Alojou-se num pequeno hotel do centro, perto dos correios. Nunca tinha ficado num hotel em Viena. Tinha sido sempre sublocatário, com e sem serventia de banho, com e sem serventia de telefone. Ficara com parentes, com uma enfermeira que vivia sozinha e que não suportava o seu cheiro a tabaco, com a viúva de um general de cujos gatos e cactos ele tinha de cuidar quando ela ia para as termas.
Esteve tão indeciso durante dois dias, que não se atreveu a telefonar a ninguém. Ninguém o esperava. A algumas pessoas não escrevia há já demasiado tempo, outras não tinham respondido às suas cartas. Sentiu de repente que o seu regresso era impossível por várias razões. Um morto não teria mais direito do que ele a regressar. Ninguém pode prosseguir onde quebrou.»
[Ingeborg Bachmann, Trinta Anos; trad. Leonor Sá, Relógio d’Água, 1988;
home sweet home]

12 de agosto de 2012

10 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«As crianças! (Em última instância sabem muito bem como se chamam, mas só prestam atenção quando alguém grita “meninos!”.)»
(Ingeborg Bachmann)

Nem sempre a lápis (307)

Animais domésticos
(1970/1980)

A nossa vocação é esta: entrarmos freneticamente nos lugares públicos e não decidirmos o espaço.
Ou, apoderados de sentimentos novos, atravessarmos os corredores do vento e achar uma pedra.



12. Não sei que mão traga a linguagem, quando os barcos desocupam a memória e a demência encanta as algas. As paredes cantam a inocência desordenada. Só a água é veloz sob o mês de maio.
E então, digo: casa, e a palavra casa agoniza ao fundo da escada que a mãe desce, devagar, para o jardim. As pessoas invadem os campos em movimento, e eu estou órfão no fim da europa, como uma ilha bêbada.

Papiro do dia (248)

«As crianças começam a usar palavras novas. Já não soletram. Lêem jornais, dos quais emerge a imagem do tarado sexual assassino. Este transforma-se na sombra projectada pelas árvores, quando se volta para casa depois da catequese, e provoca o rumor dos lilases que se balançam ao longo dos jardins fronteiros às casas; os viburnos e o flox separam-se e por uns momentos deixam entrever a sua silhueta. Sentem as garras do estrangulador, o mistério que se esconde na palavra sexual e que ainda é mais de temer do que o assassino.
As crianças lêem até ficarem de olhos esgotados pelo cansaço. Têm enormes olheiras por terem estado à noite até muito tarde no Curdistão selvagem ou junto dos pesquisadores de ouro no Alasca. Põem-se à escuta de um diálogo amoroso e desejam possuir um dicionário para aquela linguagem incompreensível. Dão voltas à cabeça para compreenderem os seus corpos e uma discussão nocturna no quarto dos pais. Riem por tudo e por nada, não se conseguem conter, caem da cadeira de tanto rir, levantam-se e continuam a rir até ficarem com cãibras.
O assassino, porém, cedo é encontrado numa aldeia, em Rosental, numa granja, com fiados de palha e a tarja cinzenta no rosto, que o tornará irreconhecível para sempre e não só no jornal da manhã.»
[Ingeborg Bachmann, Trinta Anos; trad. Leonor Sá, Relógio d’Água, 1988;
as crianças]

9 de agosto de 2012

7 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Na casa alugada da Rua da Passagem as crianças têm de descalçar os sapatos e andar a brincar em meias porque moram por cima do senhorio. Só podem falar em voz baixa e não mais deixarão esse hábito enquanto viverem.»

Nem sempre a lápis (306)

Animais domésticos
(1970/1980)

11. Fiz a aprendizagem lenta das águas, quando vinha da escola. Não sei que voz inspirava a minha, que se tornava íngreme à medida que atravessava os meses atrás do exame. Quando queria falar dos terríveis ensinamentos das águas, a minha voz era uma paisagem multiplicada. Desatenta, a escola tombava o rosto que as letras arrancavam dos textos. Uma janela incendiava a parede branca. A vila adormecia domesticamente no seu sangue fervido.
Que rosto assomava à janela, enquanto dormia?
A circulação é exterior. O sangue vibra nos cadernos de exercícios, e a loucura estende-se sobre as carteiras de castigo. Então a aula assiste à evolução da fonética para baloiço ou pião, e a palavra INTERVALO treme junto à porta que o vento transpõe.
Sem que ninguém o saiba, à noite os peixes abandonam a água e passeiam pelas ruas vazias. Se uma janela se acende é porque uma criança foi tragada por um peixe, que lhe esvaziou o sono.
Na manhã seguinte, fala-se de uma beleza terrível a que só o mês de outubro põe fim.

Papiro do dia (247)

«Em dias bonitos de Outono, quando se vem da Rua Eadetzky, pode ver-se, ao lado do teatro municipal, um grupo de árvores ao sol. A primeira árvore, defronte daquelas cerejeiras avermelhado escuro que não dão frutos, está tão inflamada de Outono, é uma mancha tão desmesuradamente dourada, que parece um archote deixado cair por um anjo. E agora ela arde, e o vento do Outono e o gelo não a podem fazer extinguir-se.
Quem vai querer, pois, falar-me do cair das folhas e da morte branca diante desta árvore, quem vai querer impedir-me de a contemplar e de crer que ela me iluminará sempre como nesta hora e que escapará à lei universal?
À sua luz também a cidade se torna agora de novo reconhecível, com pálidas casas sob telhados escuros, e o canal que, de quando em quando, traz consigo do lago um barquinho que aporta ao seu coração. O porto está morto, desde que as cargas são trazidas mais rapidamente para a cidade em comboios e camiões, mas do alto cais caem ainda flores e frutos que ficam a boiar na água enlodaçada, a neve precipita-se dos ramos, a água do orvalho corre, rumorejante, por ali abaixo e então ele cresce novamente e com gosto e levanta uma onda e com a onda um barco, cuja vela colorida fora içada à nossa chegada.
Dificilmente as pessoas poderiam ser atraídas de outra para esta cidade, porque eram muito poucos os seus atractivos; vinham das aldeias, porque as quintas se tinham tornado demasiado pequenas e procuravam alojamento nos subúrbios da cidade, onde ele era mais barato. Lá estavam ainda campos e pedreiras de cascalho, as grandes hortas e os terrenos de construção, onde tinham sido cultivados, anos a fio, nabos, couves e feijão, o pão dos moradores mais miseráveis. Tinham sido eles a cavar as suas próprias caves, em terras com águas subterrâneas. Tinham construído eles próprios os seus telhados, nos curtos serões entre a Primavera e o Outono, e sabe Deus se tinham tido tempo de chegar a ver um alboroque antes de morrerem.
Aos seus filhos isso nem sequer interessava, pois já tinham sido iniciados nos odores inconstantes trazidos de longe, quando as batatas assavam nas fogueiras e os ciganos, com a sua estranha língua, se instalavam por períodos fugazes na terra de ninguém, entre o cemitério e o aeroporto.»
[Ingeborg Bachmann, Trinta Anos; trad. Leonor Sá, Relógio d’Água, 1988;

6 de agosto de 2012

5 de agosto de 2012

Autorretrato




4 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«E os pardais riam; debicavam as folhas que o ar fazia cair, e riam; deixavam as suas penas entre as agulhas dos ramos e perseguiam as borboletas e riam. Era esse tempo.»
(Juan Rulfo)

Nem sempre a lápis (305)

Animais domésticos
(1970/1980)

10. As tábuas atravessavam velocíssimas o oceano. Havia fome. Um campo de girassóis decepados, de encontro à tarde. E uma flor nasce nos lagos estonteados pela morte. Ninguém tinha sossego. De repente as ruas começavam a pensar até setembro. Estavam vivas. Imagino-te depois da praia, com o rosto riscado pelas escamas dos peixes, e tremo devagar encostado à minha voz. Tu contas-me o mês de setembro, na praia, pois
setembro
enquanto as ruas assaltam os prédios e começam a comer-nos o céu. As árvores mexem-se no fundo das raízes. A floresta anda doida à procura de um sítio onde possa morrer devagar, pelas raízes. Tenho medo, diz uma estátua algures, no cimo. E o medo é verde em cima do pedestal. Não, é apenas uma estátua cheia de espinhos, do lado de fora da manhã. Um lenço por onde comes a praia, depois da fome das tábuas. O oceano arde de encontro às ruas transtornadas. Ninguém tem uma flor velocíssima para poder ter medo no cimo das raízes,
das raízes estonteadas dos mortos.

Papiro do dia (246)

«San Gabriel sai do nevoeiro húmido de orvalho. As nuvens da noite dormiram sobre o povoado procurando o calor das gentes. Agora está para sair o Sol e a névoa levanta-se devagar, enrolando o seu lençol, deixando fios brancos em cima dos telhados. Um vapor cinzento, apenas visível, sobe das árvores e da terra molhada atraído pelas nuvens; mas desvanece-se de seguida. E atrás dele aparece o fumo negro das cozinhas, cheiroso a azinheira queimada, cobrindo o céu de cinzas.
Lá longe, os outeiros estão ainda em sombras.
Uma andorinha cruzou as ruas e depois ouve-se o primeiro toque da alvorada.
As luzes apagaram-se. Então, uma mancha de terra envolve o povoado, que continua a ressonar um pouco mais, adormecido nas cores do amanhecer.
Não se sabe se as andorinhas vêm de Jiquilpan ou se saem de San Gabriel; só se sabe que vão e vêm ziguezagueando, molhando o peito no lodo dos charcos sem perder o voo; algumas levam algo no bico, recolhem o lodo com as penas timoneiras e afastam-se, saindo do caminho, perdendo-se no sombrio horizonte.
Sobre San Gabriel estava descendo outra vez o nevoeiro. Nos outeiros azuis brilhava ainda o Sol. Uma mancha de terra cobria o povoado. Depois veio a escuridão. Nessa noite, não acenderam as luzes, de luto, pois dom Justo era o dono da luz. Os cães uivaram até ao amanhecer. Os vidros de cores da igreja estiveram acesos até ao amanhecer com a luz dos círios, enquanto velavam o corpo do defunto. Vozes de mulheres cantavam no semi-sono da noite: “Saiam, saiam, saiam, animais de penas”, com voz de falsete. E os sinos estiveram tocando a morto toda a noite, até ao amanhecer, até que foram cortados pelo toque da alvorada.»
[Juan Rulfo, A planície em chamas; trad. Ana Santos, Cavalo de Ferro, Novembro 2003]

3 de agosto de 2012

2 de agosto de 2012

1 de agosto de 2012

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«E, enquanto a narrativa se vertia, as frases demandavam, nas anharas, a exacta referência a que aspiravam.»
(Ruy Duarte de Carvalho)

Nem sempre a lápis (304)

Animais domésticos
(1970/1980)

8. Temos um pátio – uma ideia de pátio – onde os sons estonteantes dos gritos pululam como cactos. Encostamos os ouvidos às árvores, e as árvores começam a crescer dentro de nós: explodimos devagar, nos pátios.
Vejo as tábuas atónitas encostadas à queda. Voltamo-nos para o centro e os barcos alimentam a paisagem. A paisagem mastiga os barcos, como a estátua devora a homenagem. Aos domingos acrescentamos a semana, ao contrário dos outros dias. Só as águas cantam nas flores mortas, depois da nossa grandeza.
Do fundo da tarde vem a noite aos tropeções nas árvores. Os telhados dão fruto, debruçados sobre uma tábua esplêndida e as paredes explicam a infância. Tudo mexe em volta das tábuas loucas. Eram azuis, as casas. Não sei como mexem os campos em volta dos girassóis tremendos.
A uma casa, segue-se um jardim.
A uma casa, segue-se uma casa sitiada por um jardim.
Atravessei-me como uma ave, a alma distraída de uma ave. Como profissionais batemos as mãos arrancadas das paredes, enquanto as árvores mancham as civilizações. Percorremos os mapas. Inventamos países. Por toda a parte as crianças iluminam maçãs venenosas. Pouco se sabe da nossa vocação. À nossa volta a terra muda de posição e os astros fervem horrorizados.
Apodrecemos lentamente, por baixo.

Papiro do dia (245)

«A clareza com que agora entendo a ligação dos casos estende-se a tudo quanto vejo e sinto e palpo. Surge-me absolutamente natural, pela primeira vez na vida, estar onde estou, dentro de mim e aqui. E nem a perfeita noção do meu papel neste embate de forças, instrumento de vontades que recuso, produz outra estranheza que não a de mostrar-me enfim maduro para assumir o risco de ver claro.
Desde os primeiros contactos com o material que haveria de conduzir ao arrojo destas linhas, eu sentia dever-me, em termos de satisfação pessoal, um circunstanciado entendimento dos casos, como se disso viesse a depender a organização da minha vida futura. Ver-se-á, ao longo da narrativa, de que forma a estória resulta de uma sucessão de ocorrências que progressivamente me vão envolvendo na trama crescente das informações e dos contactos, como se houvesse dela mesmo algum empenho em perseguir-me. Eis-me, finalmente, na posse de tudo quanto julgo ao meu alcance.
É esta a última noite que passo nesta fazenda. Vou consumi-la a encher as páginas que se vão seguir. E abalarei fechado para o que cá existe. O aeromotor há-de ficar eternamente às voltas contra um céu expectante e arrastará pelas muitas noites a insistente queixa da vara-mestra. Os cães, enormes, adivinharão hienas na distância. E as fogueiras cumprirão, para sempre, a sagrada tarefa de reunir os homens.
Um poeta revela intimidades… Ironias que a prosa mal comporta.»
[Ruy Duarte de Carvalho, Como se o mundo não tivesse leste; Cotovia, 2003]