30 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O desgosto é uma condição humana e não médica e, se há comprimidos para nos ajudar a esquecê-lo – e tudo o resto – não há comprimidos para o curar.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (458)

Memória descritiva
Laranja
A estrada para o Caramulo acendia-se de laranjas.
A berma ladeava-se de cestas traiçoeiras, que desafiavam a atenção dos condutores e atiçavam discussões familiares.
A que lhes era alheio o sabor e o preço.
Pelo caminho ficavam as confidências das meninas.
Seios à dimensão de uma laranja, revelados em aulas improvisadas pela curiosidade.
Os gomos adocicavam-nos o tacto, sem que os dedos se quebrassem na expectativa.
Miller fez-me correr pomares à procura das laranjas de Hieronymus.
Mas tudo quanto vi foram as cascas deixadas por Al-Mu’tamid, junto ao sabor uniformizado pela Europa.
Uma vez, o vento atirou-me uma azahar para dentro do chá, em Tânger.
Finalmente, a flor da laranjeira sossegava-me a cabeça no regaço das estradas.

Papiro do dia (418)

«Depressa percebi que o desgosto seleciona e reorganiza os que estão à volta de quem sofre; que alguns passam e outros reprovam. Velhas amizades podem intensificar-se através da dor partilhada; ou revelar-se de repente superficiais. Os novos são melhores que os de meia-idade; as mulheres são melhores que os homens. Não devia ser surpresa, mas é. Afinal, esperávamos que os mais próximos em idade e sexo e estado civil percebessem melhor. Que ingenuidade. Lembro-me de uma “conversa, à mesa de jantar” de um restaurante, com três amigos casados que tinham aproximadamente a minha idade. Todos a conheciam há muitos anos – talvez oitenta ou noventa, no total – e todos teriam dito, se lhes perguntassem, que gostavam muito dela. Mencionei o seu nome; ninguém deu resposta. Voltei a fazê-lo e nada. À terceira, talvez eu estivesse deliberadamente a tentar provocar, irritado com o que me parecia não boas maneiras, mas cobardia. Receosos de tocar no nome dela, três vezes a negaram e, por isso fiquei com a pior ideia acerca deles. Há a questão da raiva. Alguns ficam zangados com a pessoa que morreu, que os abandonou, que os traiu ao perder a vida. Há coisa mais irracional do que isto? Poucos morrem por vontade, até a maior parte dos suicidas. Alguns dos que são atingidos pelo desgosto ficam zangados com Deus, mas, se Ele não existe, também isso é irracional. Há os que ficam zangados com o universo por deixar que as coisas aconteçam, que sejam inevitáveis e irreversíveis. Não senti propriamente isso, mas, durante aquele Outono de 2008, li os jornais e segui os acontecimentos na televisão com uma indiferença avassaladora. Por alguma razão dei muita importância a que Obama fosse eleito, mas muito pouca ao resto do mundo. Diziam que todo o sistema financeiro podia estar à beira de cair e se despenhar, mas isso não me incomodava. O dinheiro não podia salvá-la, então para que servia o dinheiro e para quê salvar-lhe a pele? Diziam que o clima mundial atingira um ponto sem retorn, mas podia atingir esse ponto e continuar, que para mim era igual. Eu voltava do hospital para casa, de carro; e num dado lugar da estrada, mesmo antes de uma ponte ferroviária, vieram-me à ideia estas palavras que repeti em voz alta: “É simplesmente o universo a fazer o seu trabalho.”»
[Julian Barnes, Os níveis da vida; trad. Helena Cardoso, Quetzal, Novembro 2013;
can you hear me now?]

 

29 de novembro de 2013

[pcebe?]

27 de novembro de 2013

25 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical


Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O desgosto reconfigura o tempo, a sua extensão, a sua textura, a sua função: se um dia não significa mais do que o seguinte, então porque foram destacados e receberam nomes separados?»
(Julian Barnes)
 

Nem sempre a lápis (457)

Memória descritiva
Jogo
 
Aspirei atmosferas de fumo, ingeri consideráveis gramas de lisérgicos, e naufraguei em oceanos de álcool.
Durante anos, fiz questão de nunca comer em jejum.
E essa tão aplaudida atitude, fez-me perder o apetite.
Comecei a passar-me na tropa, celebrando a peluda e, imediatamente, o 25 de Abril, com LSD e tudo o mais prescrito pelas vanguardas escancaradas.
Onde insistia em incorporar-me.
Pouco depois, no imenso balcão da Rádio Comercial, aderi à tasca.
Acompanhando as suas vozes mais invejadas e carismáticas.
Tive mestres entre a fina-flor radialista, e os mais solicitados marginais deste beco intelectual.
Um dia, apercebi-me de que só bebia porque queria.
E apercebi-me também, que não queria deixar de querer.
Confrontado com este dilema, habituei-me ao show off do internamento, na expectativa das saídas para me empitrolar.
Andei nisto, meses.
Ao terceiro internamento, cansei-me do ritual e decidi nunca mais beber.
Como antes decidira não me janar mais.
Ou talvez o álcool transportado pela euforia da Comercial se tivesse sobreposto à actualidade da passa e dos ácidos.
Andei mais de um ano assustado com autênticos buracos negros na memória, enfeitados pela mania da perseguição.
Sobressaltava-me a ideia de ser acusado por ter feito qualquer coisa - péssima, claro - de que não tinha a menor ideia.
Com o tempo, esqueci-me.
Como me tenho esquecido de tantas outras coisas.
Só me recordo, quando algum drogado ou algum alcoólico, me chama careta.

Papiro do dia (417)

«Às vezes queremos continuar a amar a dor. E depois, para além disto, aparece outra questão bem delineada sobre a nuvem: o sucesso na dor, no luto, na mágoa é uma realização ou uma simples e dada condição que agora é nova? Porque aqui a noção de livre-arbítrio parece irrelevante; a atribuição de virtude e finalidade – a ideia de recompensa pelo luto – parece deslocada. Pode ser que desta vez a analogia com a doença seja válida. Estudos de doentes com cancro mostram que a atitude de espírito tem muito pouco efeito no resultado clínico. Podemos dizer que estamos a combater o cancro, mas é o cancro que simplesmente nos combate; podemos pensar que o derrotámos, e ele retirou-se para se reorganizar. É só o universo a fazer o seu trabalho e nós somos o trabalho de que ele é feito. E talvez seja igual com a dor. Imaginamos que lutámos contra ela, que fomos resolutos, que superámos a mágoa, raspámos a ferrugem da nossa alma, mas o que aconteceu foi que a dor se mudou para outro lado, ganhou novo interesse.»

[Julian Barnes, Os níveis da vida; trad. Helena Cardoso, Quetzal, Novembro 2013]

23 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical


Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Os escritores acreditam nos padrões que as suas palavras formam, e esperam e confiam que elas produzam ideias, verdades, histórias. É sempre essa a sua salvação, com ou sem dor.»
(Julian Barnes)

Nem sempre a lápis (456)

Memória descritiva
Ilha
 
Alcancei-a do ar, ao fim de Maio.
Como um Ícaro fundido pelo lusco-fusco do verde, estatelava-me irremediavelmente no arquipélago.
Um pé numa rua de Coimbra, homónima, outro algures nos Açores.
Durante anos, a palavra ilha serviu-me de argumento para as mais desconcertantes desculpas.
A poesia ainda hoje é uma boa desculpa, e as minhas tentativas de aproximação à ilha, até se manifestavam nas opções do tabaco.
Essa pequena Ilíada.
Finalmente, eu tinha uma ilha sob os meus pés, e não sabia o que fazer com ela.
Nem vislumbrar-lhe os limites do mar, encandeado pelas decorações do Divino Espírito Santo.
Só no dia seguinte, quando a cabeça de uma vaca se intrometeu entre a janela aberta do quarto e o mar, eu percebi que estava entregue à sorte dos mistérios, no Atlântico.
Desci aos Fenais da Luz para apanhar a carreira, e não descortinei atlantes entre os rostos basálticos da taberna.
Em contrapartida, a carreira foi arrebanhando estudantes saídos das canadas, acompanhada sempre pelo voo rápido dos canários, que desviavam o curso à vista da cidade.
Permanecem iletrados, suponho.

Papiro do dia (416)

«Deus morreu e já não está lá a ver-nos. Por isso temos nós de nos ver. E Nadar deu-nos a distância, a altitude para o fazermos. Deu-nos a distância de Deus, a visão do olhar de Deus. E onde chegou (até agora) foi ao Nascer da Terra e àquelas fotografias tiradas da órbita lunar, nas quais o nosso planeta parece praticamente igual a outro planeta qualquer (exceto para um astrónomo): silencioso, rotativo, lindo, morto, irrelevante. Que pode ter sido como Deus nos viu e a razão pela qual se ausentou. É claro que não acredito no Deus Ausente, mas uma história assim é um belo paradigma.
Quando matámos (ou exilámos) Deus, matámo-nos também. Demos realmente por isso, na altura? Nem Deus, nem vida depois da morte, nem nós. Fizemos bem em matá-lo, é claro, ao nosso amigo imaginário de longa data. Também não íamos ter vida nenhuma depois da morte. Mas serrámos o ramo onde estávamos sentados. E a vista de lá, daquela altura – ainda que fosse uma vista ilusória – não era assim tão má.»
[Julian Barnes, Os níveis da vida; trad. Helena Cardoso, Quetzal, Novembro 2013]

22 de novembro de 2013

Dar a face...

«Tante Marie tinha uma relação problemática com os parisienses. Vivia numa pequena quinta em Cognac (sim, exactamente aí onde se destila a excelência francesa do mesmo nome), rodeada de galinhas, patos e coelhos, orgulhosa das suas couves e das suas cenouras. No quintal, lembro-me, havia uma árvore que dava dióspiros.
A partir de Novembro a lareira estava sempre acesa na sala de entrada da casa e Tante Marie aproveitava o lume para nos preparar deliciosas galletes à maneira bretã, exigindo-nos que as comêssemos, indiferente aos nossos protestos contra o presumível acréscimo de matéria adiposa que ela assegurava ser uma garantia contra a descida das temperaturas.
Em Cognac raramente nevava, mas, ainda assim, fazia muito frio. Condenadas ao Inverno, as nossas almas elevavam-se na melancolia dos entardeceres prematuros degustando patés, queijos e tartes e Bordeaux, tudo de primeiríssima qualidade.
Por vezes, quando se encontrava na horta debruçada sobre os vegetais, examinando-os com o rigor que se imagina Madame Curie poria nas suas anotações científicas, o barulho de um carro mais veloz interrompia a revista às cenouras e às couves e Tante Marie exclamava em tom reprovador: Ah! voilà les parisiens!
Até poderiam não o ser. Para aquela mulher pequena de aspecto frágil, capaz, todavia, de despachar numa só tarde dez ou mais coelhos de um golpe certeiro, parisien era tão-só sinónimo de urbano-ó-parvo. Sobre estes, tinha ideias tão definitivas como o gesto com que aviava os desafortunados albinos: pobres Bouvard e Pécuchet passeando-se pelos campos nomeando em voz alta os legumes: «Olha, cenouras! Ah, couves!», trocando sempre as referências.
Para Tante Marie, tratava-se da prova provada da idiotice urbana. Estivera em Paris apenas uma vez, logo após o seu casamento, já Hitler estiraçava os seus tentáculos pela Europa fora. Nessa altura, o mercado Les Halles não se convertera ainda no gigantesco centro comercial que o tempo haveria de provar ter sido une idée de merde, o pitoresco Marais não suspeitava sequer do seu futuro gay-chic nem a rive gauche da explosão do Maio de 68. La Defense, claro, não existia, e nem nos sonhos mais megalómanos de François Mitterand lhe passaria pela cabeça vir a ser o arquitecto de La Grande Arche, sem dúvida o melhor de La Defense, esquadria perfeita com o Arc-de-Triomphe que, esse sim, Tante Marie pôde visitar, garantindo no entanto a quem a quisesse ouvir que era bem mais bonito visto de longe.
Quanto à Torre Eiffel, apesar de se ter recusado a subir os 1 665 degraus que a teriam levado ao topo das suas 10 100 toneladas (contas feitas, 324 metros, incluída a antena), Tante Marie ainda agora recordava como se sentira esmagada pela vertigem daquele monstro de ferro.
De regresso a Cognac, comprada uma imagem da Notre Dame que os anos e o chauffage haveriam de amarelecer, pouco tempo depois os alemães fariam a sua entrada triunfal na Cidade das Luzes, para se retirarem cumprido o banho de sangue que não pouparia Tante Marie à morte de um sobrinho, alguns vizinhos e conhecidos. Nunca perdoou aos boches, a quem odiava ainda mais do que aos parisiens, e isso é já dizer tudo.
Mas nem os nazis ousaram reeditar a demência de Nero, o incendiador de Roma. Apesar da carnificina, Paris nunca chegou a arder.
Sabendo-se, pois, que Tante Marie nunca mais lá voltou, podemos – no momento em que me passeio, tantas décadas decorridas, pela gigantesca Feira da Ladra que são os Puces de Clignancourt em busca de um blusão de cabedal à Major Alvega – situá-la sem grande risco à la campagne, qual alquimista submersa em grandes panelas de ferro mexendo compotas que tardam a chegar ao ponto.
Estávamos no Outono e eu desesperava no meio de uma multidão mestiça por encontrar o «meu» blusão. O amigo que me acompanhava desesperava ainda mais do que eu.
Foi então que avistei uma tenda de chapéus. Milhares de chapéus. Chapéus de todas as formas e feitios, usáveis e menos usáveis, de colecção, de teatro, masculinos e ultrafemininos, de Verão e de Inverno, em bom ou mau estado... Enfim, uma tenda-paraíso para apreciadores dos ditos. É o meu caso. Eu adoro chapéus, ainda que reconheça que é difícil usá-los.
A mulher atrás do improvisado balcão aproximou-se de mim naquele jeito nonchalance que só as temíveis consièrges parisienses parecem não praticar. Explico-lhe que vim à procura de um blusão de cabedal e que não posso agora trocá-lo por um objecto tão inversamente delicado como um chapéu. A resposta saiu-lhe pronta: "Ah, mais justement, ça serait très féminin!"
A incoerência convence-me. Regresso de Clignancourt com um chapéu negro de amazona de véu comprido a flutuar ao vento que não fazia...
Nessa noite, ao entrar no Le Mazet, bar que então frequentávamos no Quartier Latin (mesmo ao lado do Le Procope, o café mais antigo de Paris, eleito de Rousseau e Voltaire, só para não ir mais longe), onde nos deliciávamos com balões aquecidos de Cognac que nos provocavam arroubos de nostalgia à lembrança de Tante Marie, o dono precipita-se do balcão e dirige-se-me de braços abertos: "Mademoiselle, vous êtes ravissante!"
Em que outra cidade do mundo nos acolheriam desta forma, só por trazermos na cabeça um despropositado chapéu visivelmente encombrant?
E outra pergunta. Poderá o Canal Saint-Martin, anacronismo perfeito de uma cidade frenética, precipitar uma declaração de amor?
Foi precisamente aí, numa das suas margens, que Flaubert marcou o encontro decisivo entre os dois manga-de-alpaca (Tiens: des carottes! Ah! Des choux!), aquele que os levaria depois à comunhão suspirosa de quão bem estariam no campo!
Quanto a nós, há já alguns parágrafos que abandonámos Tante Marie, rendidos à beleza desta cidade que guarda, para além dos imensos boulevards rasgados por Haussmann, recantos como este, onde o tempo se submete ao ritmo lentíssimo do escoar das águas pelas comportas abertas, fazendo-nos recuar a essa tarde novecentista em que Bouvard e Pécuchet iniciam o mais maravilhoso de todos os livros inacabados.
Paris. Decididamente burguesa. Ostentatória. Por vezes arrogante e demasiado formal. Cidade onde até o garçon de café se crê herói da Comuna, isto sem demérito para os garçons nem excessiva admiração por aquela, que, como se sabe, fez bastante mais vítimas para além de Antonieta, rainha que terá subido ao cadafalso na que hoje se chama Place de la Concorde sem perceber sequer o que lhe acontecia. Cidade onde já foi o tempo em que «as coisas não acontecem de todo se não acontecem em Paris». Mas caramba! Mesmo enterrada a boémia que caracterizou durante anos esta capital, quem não se comover com o we always have Paris! que mande este texto às urtigas.
Porque eu só queria contar isto: era uma tarde de Primavera num jardim de que esqueci o nome. Dois namorados aproximam-se e, o tempo de acender o meu Bastos legère sans filtre (um marca entretanto desaparecida), sentam-se no banco em frente ao meu. Lia um livro (não, não era Proust), e quando voltei a página já eles se confundiam, beijando-se, abraçando-se e escorregando gravitacionalmente para a posição horizontal, cegos aos olhares que, diga-se em abono da verdade do que agora escrevo, se mostravam bastante complacentes para com a efusividade primaveril do jovem casal.
Foi então que fez a sua aparição o clochard, encarnação perfeita de Michel Simon em Boudu Sauvé des Eaux.
Isto passa-se, portanto, no tempo em que ainda existiam Bastos legère sans filtre e vagabundos por conta própria. O homem dirige-se para os corpos confundidos. Toca nas costas do rapaz. Não há resposta. Toca de novo. Nada. Abana-o já com algum vigor quando um rosto ruborizado e de cabelos desgrenhados se destaca no meio da confusão de braços e pernas.
"Oui?" "Tens um cigarro?" O rapaz está de pé e revista os bolsos enquanto a namorada compõe a blusa. "Não tinhas deixado de fumar?", diz-lhe ela. "Ah! Mais oui, mais oui", responde-lhe ele às voltas com as mãos inúteis. O clochard encolhe os ombros e segue. Passa por mim. Eu estou ainda a fumar. "Tu as vu les amoureux?", confidencia-me en passant. Não repara sequer que lhe estendo o maço.
Paris, uma punhalada no coração, escreveu Jack Kerouac que era um viajante solitário e nunca conheceu Tante Marie.»

[... pelo book de outros]

20 de novembro de 2013

«Percebi que estava a viver um dos grandes momentos da vida, quando sentimos, sem patetismo ou sentimentalismo excessivo, a alma a encher-se da sensação maravilhosa do estado de graça.»
(Sándor Márai)

17 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...


[lá "em sima" pode estar Pedro Tamen, mas cá em baixo ainda está o leitor]

Nem sempre a lápis (455)

Memória descritiva
Hotel
 
Estreei-me num pequeno hostal a caminho de Algeciras, até atingir os de Tânger, decorados com azulejos e o canto dos canários.
Durante anos, o jornalismo obrigou-me a um forçado upgrade do alojamento, e cheguei mesmo a dormir numa suite barroca, na Alemanha.
Ou num palácio das mil e uma noites, em Marrakech.
Não sei se me habituei mal ou bem, mas já não dispenso a comodidade de um hotel previamente marcado, no fim da viagem.
Com garagem.
Longe vai o tempo em que a mímica suplantava as minhas dificuldades linguísticas, e não me recordo de ter voltado a utilizá-la para perguntar ao estalajadeiro se o canito me defendia o carro.
Estava no Sul de Espanha, entre Tarifa e Cádiz, e toda a minha fortuna consistia num velho VW e uma mochila com roupa suja.
Os cadernos e as mortalhas tinham subido comigo para o quarto, onde uma cadeira de tabua fazia de cabide.
E uma bacia acompanhada de um jarro de esmalte e uma toalha, substituíam a casa de banho.
Dormi como um santo.
Se é que os santos dormem, e nos contam como.
Talvez me lembre desse sono, porque nunca me senti tão só, como quando tiveram a amabilidade de me servir uma refeição no quarto, em Dijon.

Papiro do dia (415)

«O mundo alargou-se; a terra já não é o centro. Ela rola no meio da multidão infinita dos seus semelhantes. Muitos ultrapassaram-na em tamanho, e este apoucamento do nosso globo dá de Deus um ideal mais sublime. Portanto, a Religião devia mudar. O Paraíso é algo de infantil, com os seus bem-aventurados sempre contemplando, sempre cantando, e que olham de cima para as torturas dos condenados. Quando se pensa que o Cristianismo tem por base uma maçã!»
 
[Gustave Flaubert, Bouvard e Pécuchet; trad. Pedro Tamen, Cotovia, Abril 1990]

15 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical


Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Ele não teria dito que sentia curiosidade por nada daquilo, quando muito diria que estava apenas à espera da inevitável viragem por que aguardara, que o levasse de volta ao lugar donde saíra.»
(Alice Munro)

Nem sempre a lápis (454)

Memória descritiva
Guerra
 
Já não sonho com aviões ao fim da tarde.
Nem me assaltam visões do céu em chamas, à hora do almoço.
Deixei essas alucinações na parada de um quartel qualquer.
E quando as escrevi, a poesia poupou-me o trabalho de as relacionar com a eminência da mobilização, e a realidade da guerra.
A nossa guerra foi apenas uma guerrazinha de Portugal dos Pequenitos, como alguns pretendem.
Mortos e estropiados, em conformidade com o orgulho da Nação.
Demonstraram-me, por a mais b, a necessidade da guerra.
A urgência da guerra.
Chamavam-me a atenção para a Alemanha, ou até mesmo a Espanha, que evoluíram à custa da guerra.
Ao mesmo tempo gozavam com o Brasil, que não teve guerra, nem tem Inverno.
Nós éramos um caso à parte.
E à parte nos mantemos, assistindo à guerra em directo, na tranquilidade do lar.
Ou enviando cobertores rotos, que nos substituem a solidariedade enlatada das conservas que passámos a importar.

Papiro do dia (414)

«Tinha de o fazer sentir que ele tinha alterado a nossa relação. Fui despejar a água da pia, depois regressei, continuei a fazer outra coisa qualquer e não trocámos mais nenhuma palavra. Mais tarde fui acordar a minha mãe da sua sesta, preparei o jantar e chamei-o, mas ele não apareceu. Eu disse à minha mãe que ele devia ter ido dar uma volta. Era frequente ele fazer isso, quando ficava empancado e não conseguia escrever. Ajudei a minha mãe a cortar a comida, mas não conseguia parar de pensar em coisas nojentas. Sobretudo os ruídos que vinham às vezes do quarto dos meus pais e me faziam tapar as orelhas para não ouvir. E agora eu olhava com espanto para a minha mãe, ali sentada a jantar, e perguntava a mim mesma o que é que ela pensaria ou saberia disso.
Eu não sabia para onde é que ele teria ido. Fui deitar a minha mãe, embora isso fosse trabalho dele. Depois ouvi o comboio a aproximar-se e de repente todo o alarido e o chiar das rodas nos carris, que era o comboio a travar, e devo ter percebido tudo, embora não saiba exactamente quando é que soube.
Eu já te tinha contado que ele foi atropelado por um comboio.»
[Alice Munro, Amada vida; trad. José Miguel Silva, Relógio d’Água, Maio 2013]

13 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Ela tem o hábito de visitar pequenos sítios só por diversão,
para ver se era capaz de lá morar.»
(Alice Munro)
 

Nem sempre a lápis (453)

Memória descritiva
Granito
 
São os guardiões das paisagens da minha infância.
O meu olhar aprendia a ver, e começava a circular por entre as sentinelas do horizonte.
Sem esforço, ou contrariedade.
Apesar da austeridade, o granito animava as casas, aconchegava os caminhos.
Apaziguava os mortos com a terra.
Quando chovia, exalava um perfume que me devolvia ao Verão, e às saudades da chuva pelas eiras polvilhadas de palha de centeio e bosta.
Impossível ignorar-lhe o calor da presença.
A homenagem apregoada pela estatuária.
Ou a majestade dos penedos.
Em miúdo, desafiei-lhes o equilíbrio.
Mas eles permanecem imutáveis como os nomes que lhes deram, e resistem à idade.
Cabeça da Velha, e outros espectros petrificados na minha infância.
São o melhor poleiro da minha imaginação, e conforto adiado para a velhice.
E quase descubro uma penugem, quando o meu corpo lhe reencontra a pele.

Papiro do dia (413)

«Voltou a lembrar-se do nome do médico, como tende a suceder quando deixa de ser preciso. As casas por que passa são, na sua maioria, do século XIX. Algumas de madeira, outras de tijolo. As de tijolo têm amiúde dois andares, as de madeira são algo mais modestas, de um só piso com aproveitamento de sótão e tectos inclinados nas divisões de cima. Algumas das portas de entrada abrem quase directamente para o passeio. Outras dão para alpendres, alguns dos quais envidraçados. Há um século, num fim de tarde como este, as pessoas estariam sentadas nos alpendres, ou talvez nos da entrada. Donas de casa que tinham acabado de lavar a louça e de dar uma última varridela do dia à cozinha, maridos que tinham acabado de enrolar a mangueira depois de regarem o relvado. Não havia, como hoje, mobiliário de jardim sem ocupantes, só para exibição. Havia apenas os degraus de madeira ou cadeiras trazidas da cozinha. Conversas sobre o tempo ou sobre um cavalo fugido ou sobre algum vinho que adoecera sem que houvesse expectativas de que recuperasse. Especulações a seu respeito, assim que ela deixasse de poder ouvi-los.
Mas não os teria ela tranquilizado ao parar e perguntar, Por favor, podem dizer-me onde fica a casa do médico?
Novo tema de conversa. Para que é que ela quer um médico?
(Isto depois de ela se ter afastado.)»
[Alice Munro, Amada vida; trad. José Miguel Silva, Relógio d’Água, Maio 2013]

11 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Foi então que o Pita, que andava sempre a meter o nariz nos papéis dos hóspedes da D. Felicidade, disse de si para si: “Estás pronto!…”»
(Raul Brandão)

Nem sempre a lápis (452)

Memória descritiva
Galiza
 
És menina e irmã mais velha, na minha casa de costas voltadas a Fisterra.
Lembro-me da tua voz trazida pelos zé-pereiras.
Pela gaita dos amoladores, quando o sol lhes desmentia o arauto da chuva, e a louça se resguardava dos gatos, como virgem ameaçada.
Apeavam a bicicleta à beira da minha infância, e transportavam-me nas voltas da pedra de amolar.
Nada me fazia adivinhar o fascínio da tua terra cha.
A sinfonia de verdes que me alimentam o olhar e a alma.
Que o mapa das noites de Verão me conduzia a Santiago.
Percorri-te os quatro cantos, dos Ancares, à foz do Eo.
Das rias baixas, às encruzilhadas do Caminho.
Com mágoa e emoção.
Insultado pela História e a fronteira da língua: a cicatriz do Minho.

Papiro do dia (412)

«Vivia num ambiente falso e fora da realidade. De tanto sonhar não podia senão sonhar. Às vezes exclama de si para si, quando saía por acaso da atmosfera em que vivia submerso: – Valeu a pena? Valeu a pena? Estou cansado, exasperado, depois de uma velhice de fome e de misérias, com longas horas de ódio e olhares hipnóticos sobre a felicidade dos outros. A mocidade sobretudo fere-me. Eu nunca fui moço, nem nunca fui amado, e que fingidos risos de indiferença, que me fazem doer as faces, tenho pelo que chamo banalidades – saúde, amores, ter vida! Até chegar a ser Palhaço, quantas profissões! Actor, cocheiro de praça e mendigo. Da existência de noctâmbulo ficara-lhe um morcego a esvoaçar-lhe no crânio. Por fim, veio trabalhar para o circo. Só saía de noite. De dia ficava no covil do 4.º andar, ruminando pedaços de sonho gastos e esquecidos.
Esta noite encontrei-o enforcado numa oliveira, num arredor da cidade. O luar escorria sobre a ravina, e naquele sítio desolado, triste e inquietante, ele era cómico, pendurado na árvore, mais esguio, a calva a luzir-lhe como uma hóstia, mole, repugnante e coçado. Diário? Nem este velho bêbado teve nunca diário! Foi decerto para se dar ares de incompreendido que deixou estas folhas ao pé da árvore. Como se a sua miséria fosse diferente das outras misérias! Escorraçado e azedo, perseguiam-no como um lobo, até que o fizeram andar com fome e morrer como merecia…»
[Raul Brandão, A morte do palhaço e O mistério da árvore; Biblioteca de Bolso, Junho 2003]

8 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net (nem sempre) fornece um novo dia



(quem te desse com um gato morto nessas trombas até ele miar...)
 

Às vezes, lá calha...

«... há certas horas em que a gente tem necessidade de dizer tudo,
de contar a sua vida:
creio que a confissão cristã é obra dum grande psicólogo...»
(Raul Brandão)

Nem sempre a lápis (451)

Memória descritiva
Farol
 
Eu não sabia que eles formavam um colar de sentinelas.
A costa era uma linha adivinhada nas leituras que me roubavam o sono, sem que qualquer luz me iluminasse a insónia.
À distância, parecia-se com a chaminé da serração.
Vestida com calças de palhaço, às listas vermelhas e brancas.
Perfilado sobre a distância que me separava do mar, o imponente farol substituía o fumo por um dardo de luz.
Circular e intermitente.
Como uma sentinela que vigia intrusos.
Encandeava as intenções de abordagem, sem lhes dar a oportunidade de senha e contra senha.
Durante anos, o farol significou apenas a presença de um faroleiro - com barbas e cachimbo - que se calhar nos vigiava também a sorte aos caranguejos.
E deveria gozar com a nossa falta de jeito para apanhar os que vinham agarrados à boneca de bacalhau que os alimentava.
Era a nossa tarefa sobre a praia: alimentar caranguejos a bacalhau, vigiados por um faroleiro de barbas e cachimbo.
Nunca me ocorreu que alguém pudesse ser salvo pela luz.
Muito menos a que jorrava de uma chaminé com calças de palhaço.

Papiro do dia (411)

«O Diário de K. Maurício é constituído pelos pedaços de alma que aí vão. É um monólogo destacado e rouco, com frases incompreensíveis e quase sem ligação. Alguns pedaços eu corto: é que há coisas que se não publicam - farsa para que os outros se riam, dores para que os outros sintam piedade. Lembra-me um clown que tivesse por força de fazer rir a multidão ignara. Esses corto-os e para mim os guardo; os outros aí vão, apesar de ver que perdem o interesse com que sangram aqui, no caderno de papel gelado, nestes sarrabiscos que têm vida e contam a sua dor.
Tal como são, dão-me, porém, o que nesse tempo, já remoto, se chamava um estado de alma. Parece que ele, em noites de desespero, fazia literatura da sua dor, para se esquecer. São frases bruscas às vezes, páginas entrecortadas e monólogos espremidos do fel. E de súbito, num acesso, julga-se ouvir uma boca dizer-nos, na noite e ao ouvido, segredos que nos transem.
Todo este Diário é áspero, com frases inacabadas, monólogo de quem vai numa subida a pique, mas, como é vivido e sofrido, amo-o e enternece-me, como se o próprio K. Maurício, numa longa conversa, me mostrasse a sua alma de grotesco, incompleta, mas tão dorida e tímida, que me enche de piedade. A cada ilusão morta, como a sua sensibilidade estremece e como ele chora! Que estranho pessimista este, tão ingénuo! Decerto que nem sempre foi sincero, mas no Diário raramente pensou que teria leitores, assim como em todas as páginas que a seguir transcrevo, e em muitos pedaços atirados para o papel numa sofreguidão de se contar...»
[Raul Brandão, A morte do palhaço e O mistério da árvore; Biblioteca de Bolso, Junho 2003;
exageros]

7 de novembro de 2013

6 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical


Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«O raciocínio é um vício com o qual se chega a tudo – até a ministro…»
(Raul Brandão)

Nem sempre a lápis (450)

Memória descritiva
Escrever
 
Antes que seja tarde, devo dizer que considero o acto de escrever pouco saudável.
E gostaria que o tom fosse considerado como um desabafo, e não confessional.
Decorrido meio século de existência, aprendi a coabitar comigo mesmo.
Quer essa relação se assuma como um comovido flash back, ou um severo ajuste de contas.
Felizmente, sobra-me mais tempo para esquecer, do que para emendar.
Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para considerar a escrita - como qualquer outro acto criador - antropófaga até à vileza.
Ninguém se surpreenderá se afirmar que a minha geração superou esse objectivo.
Excedendo-se no show off, ou no strip-tease onanista, onde um predisposto auditório se reconhece e excita.
A leitura das gerações que me precedem, em nada têm contribuído para perturbar, ou abalar, este assumido preconceito.
Os Pessoa, Kérouac, Ginsberg, Hemingway, Michaux, Aquilino, Cardoso Pires, o exaltante Saint John Perse, ou o inevitável Herberto, todos me recusaram uma escrita límpida e saudável.
Até mesmo em O Sorriso Aos Pés da Escada, o único Miller que conservo, a beleza é perversa e sublinhada por um fio de pus.
Todos eles me envenenaram uma predisposição que começou por ser saudada na escola, e onde a família se conformou em depositar esperanças de que continuasse a ser bonita.
E, sobretudo, que tivesse futuro.
Antes que seja tarde, devo esclarecer que ainda hoje tenho relutância em considerar o futuro, e que me reservo o maior desprezo pelo presente.
Sem pretender a honestidade que, dificilmente, reconheço nos outros, arrisco que a escrita - como qualquer outro acto criador - precisa de vítimas.
E alimenta vítimas.

Papiro do dia (410)

«A cada passo se formam por aí grupos literários. Há-os em todas as gerações. Os rapazes sentiram sempre necessidade de comunicar e juntam-se conforme o caso, as afinidades ou as aspirações.
É um momento delicioso que nos deixa para sempre um nada de poeira no fundo da alma – algum pó dourado que teima em reluzir até ao fim da vida. Já o passado fica muito longe, já as figuras de apagadas mal se distinguem e ainda a poeira de sonho teima lá no fundo… E que essas horas são como a primeira flor das árvores: não há nada que as pague. Por melhores e mais conscientes amizades que mais tarde se adquiram, nenhuma chega à dos vinte anos, quando o homem não tem interesses a defender e os sentimentos estão em pleno viço. Não há um de nós que saiba ainda o que vale a existência e todos de mãos dadas olhamos com sofreguidão e candura. É o começo delicioso duma aventura. Estamos juntos e unidos como irmãos e já sentimos o travor da separação: só mais um passo e cada um parte para o seu lado, sem às vezes se tornar a ver.
Valia a pena determo-nos a olhar a vida, tingida de névoa azul como certas paisagens que só são belas de longe – a vida como nunca mais nos será dado vê-la –, mas quem é que nessa idade se detém?.»
[Raul Brandão, A morte do palhaço e O mistério da árvore; Biblioteca de Bolso, Junho 2003]


 

4 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Os actores são sempre maiores do que o cenário
e o texto incomparavelmente maior do que os actores.»
(Maria Judite de Carvalho)
 

Nem sempre a lápis (449)

Memória descritiva
Deus
 
Às vezes arrepia-me nunca ter desejado a morte do pai.
Ou levantado os olhos para interrogar Deus.
Arrepia-me, é uma forma de dizer, porque essas preocupações nunca me maquilharam a angústia.
Ou assanharam qualquer espécie de revolta.
O meu olhar ocupou-se sempre muito mais com a linha do horizonte, e não me lembro de levantar ou baixar os olhos.
Desconheço e, francamente, não me interessa o destino do pai.
Como nunca me preocupou a origem de Deus.
Este autismo – ou ignorância, que me tem oposto a conceituadas arrogâncias – alimenta-me a vagabundice intelectual.
Liberdade que nunca consentiria trocar por qualquer especialização.
Ou insónia.
Talvez essa indiferença me tenha custado o lugar reservado pela minha geração.
Para que me sentisse solidário e acompanhado na angústia.
Que ambas lhes façam bom proveito.
E ainda melhor uso pelos filhos.

Papiro do dia (409)

«O café tinha esfriado. O cigarro ardera sozinho no cinzeiro, mas a cinza não se desmanchara. Claude olhava a sala reflectida no espelho, obscura e esverdeada como um aquário gigantesco, e dizia: “E depois?”, mas era uma pergunta desinteressada, feita num tom mole e impessoal, de simples delicadeza.
O pai tinha entrado no quarto como todas as manhãs. Dava-lhe sempre um beijo do lado esquerdo – que não era o do coração mas o da porta. “Passaste bem a noite?”, e pronto, já tinha partido, mesmo que o seu corpo ali continuasse a estar por mais uns momentos. Só tornava a vê-lo à noite, quando se vinha despedir. “Boas-noites, Maria da Graça.” Era como se só a noite o preocupasse. Mas não era isso. O pai cultivava sem uma única falha essas fórmulas de cortesia burguesa, um pouco de meia-tijela, que, segundo dizia, formavam o carácter das pessoas. Graça pensava que ele tinha razão, ou talvez nem isso pensasse porque só mais tarde, no tempo de Claude, começara a olhar para o pai com um certo espírito crítico de que brusca e inesperadamente se descobrira possuidora.
Mais tarde não havia de recordar a quantos estavam do mês, de que mês – unicamente que era Inverno –, mas lembrar-se-ia de outras coisas mais insignificantes do que essa. Leda a entrar-lhe no quarto, por exemplo, muito depois de o pai ter saído. “Bons-dias, Graça.” Adaptara-se com facilidade aos ritos da casa, mais ainda, dir-se-ia que os tinha abraçado com o entusiasmo sempre exagerado de todos os recém-convertidos. “Como te sentes hoje?» Uma pergunta com resposta paga. Naturalmente devia dizer, com um daqueles sorrisozinhos pré-fabricados que tinha sempre em caixa, que “melhor, obrigada” ou então “na mesma, agradeço-lhe o cuidado”. E tudo isso não significaria absolutamente nada visto que todos sabiam que ela não tinha dores nem febre. O que mais a incomodava ainda eram as frieiras.»
[Maria Judite de Carvalho, As palavras poupadas; Publicações Europa-América, 4.ª ed., 1988]

2 de novembro de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Um dia a cidade de caniço vai engolir a de cimento. 
Esse menino ainda não sabe.
Mas espera.»
(Teolinda Gersão)

Nem sempre a lápis (448)

Memória descritiva
Cavalo
Nasci numa casa dividida entre a perplexidade da morte do cavalo vapor, e o trote ameaçador das octanas.
Esses equídeos nada tinham a ver com o Pégaso de esmalte que desafiava o vento, afixado no exterior da casa.
Durante as férias aprendi a montar, sem me aperceber que a Cavalaria viria a ocupar um lugar de destaque no que mais odeio.
Nesse outro lugar, também os cavalos eram metálicos e mecânicos, sem a nobreza do animal vilipendiado.
Anos mais tarde, vim a confrontar-me com um outro tipo de cavalo:
a minha geração atulhava as veias de garranos venenosos, para sossego dos prados que abastecem o sistema.
Muitas vezes acordei a meio da noite, despertado pela proximidade de um relincho.
Hoje, a minha vida divide-se entre o trote do ozono e o luto do futuro.

Papiro do dia (408)

«Chegou entretanto a época das chuvas e como sempre a cidade ficou partida ao meio, foi bênção de um lado e maldição do outro: a chuva lavava os prédios e as ruas, regava os jardins e fazia nascer flores na cidade dos brancos, e abria feridas profundas na cidade nos negros, convertida em pântano. As areias tinham-se tornado em lama, as fossas transbordavam de dejectos, água suja invadia as casas, água putrefacta, juncada de detritos.
Entre a cidade de cimento e o aeroporto o pântano invadia tudo e era tudo – sujidade, moscas, montes de lixo, esgotos, cheiros pútridos, parasitas, mosquitos que se espalhariam mais e mais quando o vento estivesse de feição.
Causam doenças que matam, diz Laureano. Ou duram toda a vida. Porque se fica marcado para sempre. (Amélia e o seu medo do pântano, ocorre-me. Teria portanto razão?)
O governo (algo de grave e negativo se segue, sempre que ele começa uma frase deste modo) não só permite a construção nesta zona como ele próprio mandou construir habitações aqui. É tudo o que tem para oferecer aos negros.»
[Teolinda Gersão, A árvore das palavras; Sextante, 6.ª ed., Maio 2008]