6 de fevereiro de 2013

Papiro do dia (287)

«Conhecia as traseiras daquelas casas como o seu próprio quintal, os velhos tanques de lavar, os arcos de barris, as ameixieiras, as latrinas, a carcaça de automóvel sem pneus que estava havia anos atrás de uma das casas. Conhecia o Quarter nos domingos de manhã quando as mulheres penteavam e entrançavam os cabelos das crianças ao sol nos degraus da frente, quando as raparigas crescidas andavam de um lado para o outro nos longos vestidos de seda brilhante, e os homens olhavam e assobiavam baixinho os blues. E depois do jantar também o conhecia. Então a luz das lâmpadas de óleo piscavam no interior das casas e fazia nascer longas sombras cá fora. E havia o cheiro de fumo e peixe e milho assado. E havia sempre alguém a dançar ou a tocar harpa.
Mas havia uma altura em que o Quarter era estranho para ele, e era tarde na noite. Algumas vezes ao regressar tarde a casa depois de uma caçada, ou quando estava simplesmente inquieto, passara na rua àquela hora. As portas estavam todas fechadas ao luar e as casas pareciam ter encolhido e tinham o ar de choupanas vazias há muito tempo. Ao mesmo tempo havia aquele silêncio que nunca se instala num lugar abandonado, e só se faz sentir num lugar onde há muita gente a dormir. Mas enquanto ouvia aquele silêncio absoluto, tomava gradualmente consciência de um som, e era isso que tornava o Quarter um lugar estranho tarde na noite.»
[Carson McCullers, Contos Escolhidos [Fragmento sem título]; trad. Ana Teresa Pereira, Relógio d’Água, Agosto 2012;

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