27 de fevereiro de 2013

Papiro do dia (392)

«– O que estiveste a fazer?
– Estive sentado.
– Um escritor que conheci em tempos teve problemas sacroilíacos por passar tanto tempo sentado. Será que te está a acontecer o mesmo?
– Não – disse ele. – És a única pessoa honesta nesta sala.
Ele tentara tantas coisas diferentes quando as páginas em branco começaram a surgir. Tentara trabalhar na cama, e durante algum tempo escrevera à mão. Lembrara-se de Proust no seu quarto insonorizado e durante um mês usara protectores nos ouvidos, mas o trabalho não melhorara e a borracha provocara uma micose. Mudaram-se para Brooklyn Heights, mas isso não ajudou. Quando descobriu que Thomas Wolfe escrevia em pé, com o manuscrito sobre o frigorífico, também experimentou isso. Mas não parava de abrir o frigorífico e comer… Tentara escrever embriagado, e as ideias e imagens eram maravilhosas na altura, mas mudavam de forma drástica quando as lia depois. Escrevera muito cedo pela manhã, completamente sóbrio e infeliz. Pensara em Thoreau e Walden. Sonhara com trabalho manual e uma quinta de macieiras. Se pudesse dar longos passeios nas charnecas, a luz da criação voltaria… mas onde estão as charnecas em Nova Iorque?»
[Carson McCullers, Contos Escolhidos; trad. Ana Teresa Pereira, Relógio d’Água, Agosto 2012;
monturo]

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