30 de julho de 2013

Papiro do dia (421)

«À medida que o tempo passava o pudor das crianças diminuía drasticamente, o que significava também que o receavam menos – a ele – Hinnerk. Algumas vezes – quando se aproximavam em sentido contrário – Hinnerk ouvia, distintamente, uma ou outra criança a murmurar: vem aí o homem.
Esta frase tornara-se uma espécie de apresentação ao mesmo tempo secreta e obscena: vem aí o homem.
Hinnerk, em certas ocasiões, depois de se cruzar com as crianças, sorria, ouvindo naquela frase uma espécie de apresentação infantil da humanidade: vem aí o homem, eis o homem, prestem bem atenção a ele: o Homem. Um pouco como se aquela frase surgisse na sequência de um espectáculo teatral em que se apresentava ao público elementos dos diferentes reinos: eis uma planta, e eis que vem aí um animal, um cão, e agora, cuidado, vem aí um homem, o homem; e então entrava Hinnerk para o palco, agradecendo os aplausos das crianças em júbilo. Eis o homem, já chegou, sou eu.
Mas era evidente que Hinnerk sentia a hostilidade das crianças. A frase vem aí o homem dizia ao mesmo tempo: tu não és um homem, e dizia também: não quero ser como aquele homem
[Gonçalo M. Tavares, Jerusalém; Caminho, 12.ª ed. Março 2012;
e porque não?]