5 de junho de 2012

Papiro do dia (226)

«As vozes falam comigo vindas de máquinas que voam nos céus. Falam em espanhol.
Não sei nada de espanhol. Contudo, a característica especial deste espanhol que me vem das máquinas voadoras é que o compreendo imediatamente. Não sei explicar melhor este fenómeno a não ser sugerir que, embora, aparentemente, as palavras soem a espanhol, pertencem, efectivamente, não a um espanhol local mas, sim, a um espanhol de significados puros, como o que podia ser imaginado por filósofos, e que me é transmitido através da língua espanhola, graças a mecanismos que não consigo detectar porque profundamente incrustados dentro de mim, é, portanto, significado puro. É o que eu acho, humildemente. As palavras são em espanhol, mas estão ligadas a significados universais. Se não acreditar nisto, então, tenho de acreditar que ou o meu testemunho não é credível, o que pode perturbar terceiros, mas não tem a ver nem com as minhas vozes nem comigo, as duas partes que interessam, já que parece que acreditamos uns nos outros; ou há, continuamente, uma intervenção miraculosa que vem em meu auxílio sob a forma de tradução, explicação essa que prefiro não aceitar a não ser que todas as outras falhem, pois prefiro o menos ultrajante ao mais ultrajante.»
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€;
passarola]

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