12 de março de 2013

Nem sempre a lápis (354)

até Jajouka
(2006)
 
14. Lentamente, dia após dia, o meu universo acabou por se confinar ao Monte Alto. (...) Decorridos quatro anos, poderia estar horas e páginas a tentar explicar e perceber o que este espaço significa para mim, ainda deslumbrado com o isolamento e a distância que me proporciona; a enumerar o canto dos pássaros esquecidos nos ramos da minha infância e os que, aos poucos ou com outros nomes, vim a reencontrar aqui trazidos pelas estações do ano; a consultar o cata-vento para confirmar a direcção dos que o refrescam e são uma dor de cabeça quando chove; a contar como passei a prestar uma inesperada importância às fases da Lua; a surpresa de ver um rebanho de cabras a pastar em frente à porta, indiferentes às cercas das piteiras; a aguardar que a vizinha traga o pão acabado de cozer no forno de lenha, muitas vezes com uma planta para o jardim; a observar os pingos de rubi das buganvílias no chão de brecha de Tavira com que empedrámos o telheiro; a descrever as mudanças de luz ao longo do dia, até agonizar atrás da mancha de pinheiros mansos. (...) É este Algarve que grande parte das pessoas desconhece e as poucas que tiveram acesso às Casas do Monte Alto sentiram a obrigação de invejar esse lugar-comum a que chamam qualidade de vida e me provoca pele de galinha. Pouco depois, percebe-se que, bem lá no fundo, não invejam absolutamente nada que exceda um fim-de-semana. (...) O tempo e a distância encarregaram-se de me alertar que voltar a viver em Lisboa, em qualquer cidade, é um capítulo definitivamente encerrado, sem possibilidade de reabertura e revisão. (...)