A casa de ninguém
(versão é-buque enquanto não é livro)
1. O cavalheiro recuou dois passos para voltar a ver-se no reflexo da vitrina. Ajeitou ligeiramente a cabeça, satisfeito. Sentia-se favorecido por aquela posição. Nunca de perfil; sempre de viés, apenas visível a arcada da sobrancelha esquerda. Habituou-se a ver-se assim, captado nas fotos que se seguiram à infância. A partir daí, só concedia o lado direito para memória futura. Guardava, oculto, o outro lado do rosto. E a música assomava-lhe aos lábios, irrevogável.
2. Esta noite choveu e na lota, no mercado, na drogaria, na padaria, e também na farmácia, era voz corrente que o cavalheiro habitava a casa de ninguém que alguém lhe emprestara. Certezas, só a de que tomava o pequeno-almoço sempre na mesma esplanada, substituindo a saudação matinal pela afirmação, convicta, de que era o melhor pequeno-almoço dali e arredores.
«Da Europa», retribuía o empregado; resumindo, numa palavra, o nome do estabelecimento.
O cavalheiro recolhia o troco, recebido com o galão e a torrada, dava os bicos duros do papo-seco aos cães para roerem e demorava a laboriosa degustação, alheado. O currículo insistia em pedir-lhe um cigarrinho, depois.
3. A esplanada ficava a dois passos da casa de ninguém. Depois da seriedade dos Correios, seguindo por um passeio; depois de estabelecimentos diferenciados por gaiolas com canários e pintassilgos à porta, seguindo pelo passeio oposto. Comum aos dois, uma rotunda e uma ilha ecológica, superlotada. O recanto da esplanada fazia parte do loteamento e urbanização que foi empurrando a casa de ninguém para a praia, assoreando-a com uma via com quatro faixas de rodagem a ligar um arquipélago de rotundas. A recta rural entre vinhas – interceptada por uma curva de noventa graus (à má fila) que o cavalheiro conheceu na juventude – tinha-se afastado mais do dobro da distância da casa de ninguém até às escadas mais próximas da frente de mar.
Bem vistas as coisas do patamar, era a responsável pela identificação dos comércios: Doce Mar, Mar à Vista, Mar da Palha, entre outros que não ocorriam ao cavalheiro por dá cá aquela palha; digamos assim.
4. Chegados a este ponto do relato, é crucial revelar um pormenor: o cavalheiro acreditou no erro mais crasso que se possa imaginar. Acreditou na vida e, como se não bastasse, viveu-a.
5. O cavalheiro consultava as suas considerações e apanhava o voo das gaivotas, previamente anunciado pelos grasnidos. Levantava-se e percorria os diferentes acessos à praia com os cães, sugeridos pela comunicação das trelas. Só duas etapas se conservavam inalteráveis: a vista desafogada da Fortaleza e o regresso pausado pela rampa do Casino, de visita aos nomes.
Percorrida a imprevisível centena de metros – não só pela maré e pela época do ano – o cavalheiro chamava os cães pelo sexo e punha-lhes as trelas e ficava atrelado pelo pulso.
Subia as escadas pausadamente, disfarçava o cansaço, volteava a aproximação ao carro e tirava as trelas aos cães pelo sexo, abria a porta e eles pulavam, ligava a ignição e arrancava, contornava a rotunda na totalidade possível das regras de trânsito e era a certeza do fim da manhã na Europa; onde o cavalheiro ouviu dizer que choveu, essa tarde.
6. A casa de ninguém é o arquétipo da chegada do Turismo às praias familiares. (Ver caderneta predial.) É a primeira porta de um prédio com quatro andares, direito e esquerdo, no começo de uma rua que traçaram desafogada até à Escola Primária e termina, hesitante, num largo com diferentes sentidos.
A casa de ninguém fica no segundo andar, acima de quatro lanços e meio de escada suave, tendo em conta os degraus que a separam da entrada; a recepção muda. É composta por um hall, cozinha e casa de banho, um quarto de casal e outro com duas camas e um divã desdobrável, uma sala, uma varanda comum às duas anteriores divisões, a sala e o segundo quarto, implacavelmente voltadas a Norte. O chão é de parquet, as portas e as cercaduras e os rodapés envernizados, as janelas e portadas de madeira pintadas de branco. As paredes conservam uma aguada de verde mal diluído; realçam a ocupação africana que se pretende esquecida e colonizada pelo abandono dos herdeiros.
Não sendo dele (e porque não é sua) o cavalheiro elabora vários projectos para a reabilitação da casa de ninguém. É um arquitecto sentado num sofá. Hoje, derruba a parede e liga a sala ao quarto, substitui as duas portas por outras de correr, envidraçadas; amanhã, trata da cozinha e da dispensa e da varanda para o logradouro; ontem, ocupou-se com a casa de banho e o chão.
Só uma dúvida se mantém insolucionável: onde colocar a mesa de trabalho no novo espaço e, a havê-lo, como pendurar a sacola com livros nas maçanetas das portas de correr sem a sensação de se ter trancado por dentro.
7. O cavalheiro é um incondicional desta luz que dorme com os pés apontados para Sul. Adivinhou-a durante a viagem, vindo de um extremo para o outro, onde chegou à noite e iluminado pela memória dos nomes.
Ocupou diferentes lugares, antes de habitar a casa de ninguém. Viveu em cidades e vilas, viveu na Capital e no campo, viveu em várias praias. Encaixada a estocada da surpresa, instalava-se ou partia. O lugar existia, o faro era escasso. O cavalheiro era de uma reservada simpatia, enquanto coloquial. Consentia que o considerassem na reforma; metáfora a que recorria para iludir a solução final, escorraçado pelos dicionários.
O cavalheiro atravessava uma boa fase; envelhecia sem fazer perguntas para economizar respostas.
8. Com o tempo, o cavalheiro veio a saber o que se sabia: «Já o vi esta manhã a passear os cãezinhos». A baía e o mar aberto, depois dela, não abarcavam a familiaridade imposta pelo quotidiano e os seus hábitos; levar o cão à rua.
O cavalheiro admitia a estranheza da indumentária e da atitude; porém, dava-se o caso de viver no campo que ia ter à praia. O Verão não se via ao longe e o tempo comportava-se com uma instabilidade infantil. Sentiu-se ameaçado e disposto a trocar-lhes as voltas. Enlouquecer as bússolas, tresmalhar os cata-ventos, avariar os sextantes.
Era, em certa medida, uma forma de se manifestar profundamente magoado pelo abate das palmeiras.
E o cavalheiro desceu os novos degraus de fóiaite para a praia, com os cães pela trela. Esperavam-nos outros passeios pelo campo e ruelas, onde não eram conhecidos e os cães se aproximavam sem se cheirar o tipo de boas-vindas.
9. Foi assim como o cavalheiro descobriu a arte de andar à lenha, sem os cães; o coreto e um jardim de laranjeiras, acompanhado por eles. Ficava no centro da vila elevada ao incompreensível estatuto de cidade. Na pastelaria da avenida, um inconveniente friso de fotos antigas denunciava a existência de uma alameda de que o coreto era o único testemunho perdurável; acompanhado de perto por uma esplanada e guardado por um rafeiro anti-social.
Deixava o carro estacionado na avenida e demorava-se o tempo de tomar um garoto, a vigiar os avanços do tinhoso a rilhar os dentes à volta da mesa, a confrontar a ardósia com a toalha da tasca na esquina que determinava o rumo do passeio.
Há muitos anos que o cavalheiro deixara de almoçar, mas a cozinha era uma das suas fraquezas secretas; alimentava-se com os erros ortográficos das ementas, corrigidos com uma meia de leite e qualquer coisa; uma patanisca de bacalhau se tivesse ido à papelaria, a ver o resultado impresso numa mesa do mercado.
10. Entretanto, o cavalheiro interroga-se, com razão, se aproximando-se o relato do final, não é chegado o tempo de ser tratado como deve ser. Isto é, por Cavalheiro.
2 comentários:
Sim cavalheiro, diga...
~CC~
«cante, cante, nunca pare de cantar» :)
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