11 de janeiro de 2014

Papiro do dia (427)


«À mesa
Já ninguém tem regras nem horas para estar à mesa, dizem os mais velhos. Pelo menos no que respeita à terminologia estarão cheios de razão.
Começava-se o dia com a parva (a pequena refeição) ou desjejum, o mata-bicho, hoje o pequeno-almoço.
O almoço vinha um pouco mais tarde, mas ainda à pressa, ao calhar da conveniência dos horários de cada um. A palavra não é árabe, como pode julgar-se pelo al inicial. É romana: ad-morsus, ou seja, à dentada, rapidamente para ir à vida.
A merenda fazia-se no pino do calor como um intervalo indispensável, ao meio-dia (meridie) e só no regresso a casa a família acabava por se juntar na ceia (do grego Koene: conjunto). Os simpósios que hoje reúnem professores, cientistas, etc. não passavam de uma patuscada, de pretexto para mais uns copos, pois simpósio significa beber em conjunto.
Na Idade Média, a mesa era posta pela simples razão de que não havia casa de jantar e comia-se ao gosto do momento, aqui ou ali.
A mesa (ou mensa como se diz nalguns sítios do Alentejo mantendo exactamente o termo latino) era armada (posta) sobre pernas em xis, como ainda se faz com os tabuleiros dos vendedores ambulantes.
Antes de se levantar a mesa, tirava-se a toalha, já bem suja porque os comensais ali tinham limpo as mãos (embora fosse regra não meter na comida mais do que as pontas dos dedos, que também podiam limpar-se ao pêlo dos cães que solicitavam um osso sobrante). O que vinha depois, as frutas e os doces era comido directamente sobre a mesa. Daí a sobremesa. Comia-se com colher ou à mão de um recipiente comum e daí cada um meter a sua colherada.
O garfo só vai aparecer no século XVI. Objecto insólito, cuja primeira utilidade, então com um só dente, fora a de escrever as missivas romanas sobre tabuinhas de cera. Era o graphium com que se grafava, ou se escrevia.
Garfo, que, no passado, se apelidara stylum, o instrumento com que se gravavam os caracteres cuneiformes nas Babilónias e Caldeias. Cada qual com o seu estilo, e os cirurgiões com o seu estilete para fazerem talhos nos males que nos afligem, e daí talhante o que corta a carne que comemos, cada dia mais doloroso… E comemos, claro, com os nossos talheres.»
[Roby Amorim, Elucidário de Conhecimentos (quase) inúteis; 2.ª ed. revista e ampliada. Edições Salamandra, Julho 1985]
 

4 comentários:

alexandra g. disse...

Há dias vi este livro à venda por € 3,00. Não o comprei propositadamente, pelo prazer (passa-se assim por aqui com a Teolinda Gersão, também) de o debicar por aqui.

Às vezes penso que a maturidade é, pode ser, esta coisa lenta de ir lendo, vendo.

:)

Cristina Torrão disse...

Gostei desta divagação medieval. E da fotografia ;)

fallorca disse...

Creio que postar (o que diria ele desta expressão) um escritor desaparecido é uma atitude mais decente do que a enxurrada de lágrimas de crocodilo dos profissionais da necrologia e imediato esquecimento.
Alexandra g, se estiver de acordo compre-me o livro (tratamos dos aspectos económicos através da moderação de comentários, para oferecê-lo a uma Amiga.
(acertou, à Leoparda (ACL)

alexandra g. disse...

:)
Tá certo, com muito gosto.