1 de fevereiro de 2012
«É bom trabalhar nas Obras» (99)
«Os meus pais e eu visitámos oftalmologistas nas cidades de Nova Iorque, Los Angeles e Boston, mas também Barcelona e Bogotá, onde pontificavam os célebres irmãos Barraquer. Em cada um desses lugares, ressoava o mesmo diagnóstico como um eco macabro que se repete a si mesmo, postergando a solução para um hipotético futuro. O médico que mais frequentámos dava consulta no hospital oftalmologista de San Diego, logo atrás da fronteira, onde também vivia a irmã do meu pai. Chamava-se John Pentley e tinha o aspecto de um velhinho bondoso que prepara banha-da-cobra e receita gotas para a felicidade. Receitava aos meus pais uma pomada espessa que eles espalhavam cada manhã dentro do meu olho. Também punham umas gotas de atropina, substância que dilata a pupila à sua capacidade máxima e que me fazia ver o mundo de maneira deslumbrada, como se a realidade se tivesse convertido na sala de um interrogatório cósmico. Esse mesmo médico aconselhava a exposição dos meus olhos à luz negra. Para o efeito, os meus pais construíram uma caixa de madeira onde cabia perfeitamente a minha pequena cabeça, e iluminavam-na com um foco com essas características. No fundo, à maneira de um cinemascópio primitivo, circulavam desenhos de animais: um veado, uma tartaruga, um pássaro, um pavão. A rotina tinha lugar à tarde. Logo a seguir, tiravam-me o penso. Talvez, assim contado, possa parecer divertido, mas a verdade é que eu vivia aquilo como um autêntico tormento. Há pessoas que são obrigadas durante a infância a estudar um instrumento de música ou a treinarem-se para provas de ginástica, a mim treinavam-me a ver com a mesma disciplina com que outros preparam o seu futuro como desportistas.
Mas a vista não era a única obsessão na minha família. Os meus pais pareciam assumir a infância como uma etapa preparatória em que devem ser corrigidos todos os defeitos de fábrica com que cada um chega ao mundo e levavam essa tarefa muito a sério.»
Mas a vista não era a única obsessão na minha família. Os meus pais pareciam assumir a infância como uma etapa preparatória em que devem ser corrigidos todos os defeitos de fábrica com que cada um chega ao mundo e levavam essa tarefa muito a sério.»
Papiro do dia (181)
«É reconfortante que a viagem tenha uma arquitectura e que seja possível contribuir com algumas pedras para esta última, embora o viajante pareça não ser tanto alguém que constrói paisagens – tarefa do sedentário – como alguém que as desmonta e desfaz, à semelhança do barão von R. descrito por Hoffmann, que corria mundo coleccionando panoramas e, quando considerava necessário gozar ou criar uma bela perspectiva, mandava cortar árvores, desbastar ramos, aplainar as irregularidades do solo, abater florestas inteiras ou demolir fábricas que tolhessem o olhar. Mas também a destruição é uma arquitectura, uma desconstrução que segue regras e cálculos, uma arte de decompor e recompor, ou seja, de criar uma outra ordem: quando um muro de folhagens caía de súbito, abrindo a imagem das ruínas de um castelo longínquo na luz do crepúsculo, o barão von R. detinha-se alguns minutos a contemplar o espectáculo que ele próprio encenara e depois voltava a partir à pressa, para não mais ali regressar.»
31 de janeiro de 2012
«É bom trabalhar nas Obras»
Pelo presente [e-mail às 19:03] venho comunicar-vos que a partir desta data cessarei as minhas funções na Oficina do Livro/Grupo LeYa.
Como resultado do nosso contacto, mais ou menos intenso, no qual tanta relação profissional passou a pessoal e de grande amizade, não posso deixar de vos manifestar o meu mais sincero agradecimento.
Os meus contactos pessoais manter-se-ão os mesmos.
Até sempre; um abraço amigo,
Marcelo Teixeira»
[hasta, carnal]
30 de janeiro de 2012
Às vezes, lá calha...
«O esquema é o esboço de um estatuto da vida, se é verdade que a existência é uma viagem, como costuma dizer-se, e que passamos como hóspedes pela Terra.»
(Claudio Magris)
«É bom trabalhar nas Obras» (98)
«A minha vida dividia-se assim entre duas espécies de universos: o matinal, constituído sobretudo por sons e estímulos olfactivos, mas também por cores enevoadas, e o vespertino, sempre libertador e ao mesmo tempo de uma precisão desnorteante.
O colégio era, nestas circunstâncias, um lugar ainda mais inóspito do que costumam ser essas instituições. Via pouco, mas o suficiente para saber como movimentar-me dentro daquele labirinto de corredores, sebes e jardins. Gostava de subir às árvores. O meu sentido do tacto superdesenvolvido permitia-me distinguir com facilidade os ramos sólidos dos fracos e saber em que buracos do muro enfiava melhor o sapato. O problema não era o espaço, mas os outros meninos. Eles e eu sabíamos que entre nós havia várias diferenças e segregávamo-nos mutuamente. Os meus companheiros de turma perguntavam-se com desconfiança o que é que escondia atrás do penso – devia ser algo aterrador, para ter de tapá-lo – e, quando me distraía, aproximavam as mãozinhas cheias de terra a tentar tocar-lhe. O olho direito, o que estava mesmo à vista, causava-lhes curiosidade e desconcerto. Em adulta, por vezes, quer seja no consultório do oculista ou no banco de um parque, volto a encontrar-me com uma dessas crianças com penso e reconheço nelas aquela mesma ansiedade tão característica da minha infância que os impede de estarem quietos. Para mim, trata-se de uma inconformidade perante o perigo e a prova de que têm um grande instinto de sobrevivência. São inquietos porque não suportam a ideia de que esse mundo enevoado se lhes escape das mãos. Precisam de explorar, encontrar a maneira de se apropriar dele. Não havia outros meninos assim no meu colégio, mas tinha companheiros com outro tipo de anormalidades. Recordo uma menina muito doce que era paralítica, um anão, uma loira com lábio leporino, um menino com leucemia que nos abandonou antes de terminar a primária. Todos nós partilhávamos a certeza de que não éramos iguais aos outros e de que conhecíamos melhor esta vida do que aquela horda de inocentes que, na sua curta existência, ainda não tinham enfrentado nenhuma desgraça.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
divisória]
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
divisória]
Papiro do dia (180)
«Uma mosca pousou-lhe na mão. Ele sopra; ela agita-se e levanta voo.
Que nojo!
Porquê tanto ódio e obstinação contra um animal tão pequeno?
Porque ele apenas irrompe neste mundo. Tu é que vens de outras paragens. Tu é que irrompes num mundo que já não é o teu. Olha para a mosca, observa com que leveza ela vive no seu mundo.
Porque ela não tem consciência.
Não tem consciência porque não precisa dela. Vive a sua leveza, a sua morte… muito simplesmente.»
Que nojo!
Porquê tanto ódio e obstinação contra um animal tão pequeno?
Porque ele apenas irrompe neste mundo. Tu é que vens de outras paragens. Tu é que irrompes num mundo que já não é o teu. Olha para a mosca, observa com que leveza ela vive no seu mundo.
Porque ela não tem consciência.
Não tem consciência porque não precisa dela. Vive a sua leveza, a sua morte… muito simplesmente.»
29 de janeiro de 2012
28 de janeiro de 2012
Nem sempre a lápis (257)
Como disse a seu tempo, não cheguei a conhecer Rui Costa; pessoalmente e muito pouco a obra, descubro estilhaços póstumos. Percebi que algo não batia bem no blogue do quarteto, através de um texto do Henrique Fialho. Doeu-me, que nem um cão, a troca de mensagens com o Fernando Dinis, no MSN. Guardei a confidencialidade da dor, que em breve saberia pública e devassada. A folhear a bloga do dia, fui colhido pela notícia do gesto, da homenagem dos co-bloggers do Rui. Olho a lápide acima, e permanece a interrogação: De que morre um poeta de 39 anos?
Papiro do dia (179)
«A Pomba
Era uma vez uma pomba que largou um poio, bem lá do alto do seu voo. Depois largou mais outro, e depois mais um. Continuou a voar e a largar poios durante semanas e semanas. Já não conseguia parar de largar poios, porque estas coisas habituam (dizem). A pomba começou a ficar mais leve e tornou-se muito rápida. Agora descia em voo picado depois de largar um poio e conseguia vê-lo atingir o alvo, normalmente outro poio, que passeava cá em baixo como quem não quer a coisa. Os poios são - mais do que um conceito ou uma forma de estar na vida -, poios.»
26 de janeiro de 2012
Subscrever:
Mensagens (Atom)