30 de janeiro de 2012

«É bom trabalhar nas Obras» (98)

«A minha vida dividia-se assim entre duas espécies de universos: o matinal, constituído sobretudo por sons e estímulos olfactivos, mas também por cores enevoadas, e o vespertino, sempre libertador e ao mesmo tempo de uma precisão desnorteante.
O colégio era, nestas circunstâncias, um lugar ainda mais inóspito do que costumam ser essas instituições. Via pouco, mas o suficiente para saber como movimentar-me dentro daquele labirinto de corredores, sebes e jardins. Gostava de subir às árvores. O meu sentido do tacto superdesenvolvido permitia-me distinguir com facilidade os ramos sólidos dos fracos e saber em que buracos do muro enfiava melhor o sapato. O problema não era o espaço, mas os outros meninos. Eles e eu sabíamos que entre nós havia várias diferenças e segregávamo-nos mutuamente. Os meus companheiros de turma perguntavam-se com desconfiança o que é que escondia atrás do penso – devia ser algo aterrador, para ter de tapá-lo – e, quando me distraía, aproximavam as mãozinhas cheias de terra a tentar tocar-lhe. O olho direito, o que estava mesmo à vista, causava-lhes curiosidade e desconcerto. Em adulta, por vezes, quer seja no consultório do oculista ou no banco de um parque, volto a encontrar-me com uma dessas crianças com penso e reconheço nelas aquela mesma ansiedade tão característica da minha infância que os impede de estarem quietos. Para mim, trata-se de uma inconformidade perante o perigo e a prova de que têm um grande instinto de sobrevivência. São inquietos porque não suportam a ideia de que esse mundo enevoado se lhes escape das mãos. Precisam de explorar, encontrar a maneira de se apropriar dele. Não havia outros meninos assim no meu colégio, mas tinha companheiros com outro tipo de anormalidades. Recordo uma menina muito doce que era paralítica, um anão, uma loira com lábio leporino, um menino com leucemia que nos abandonou antes de terminar a primária. Todos nós partilhávamos a certeza de que não éramos iguais aos outros e de que conhecíamos melhor esta vida do que aquela horda de inocentes que, na sua curta existência, ainda não tinham enfrentado nenhuma desgraça.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
divisória] 

1 comentário:

F disse...

Pois. E eu sei.