19 de novembro de 2011

Papiro do dia (149)

«O quarto conservava os seus segredos. Não denunciava nada. Nem no desalinho de lençóis amachucados, nem no desmazelo de um sapato atirado para o chão, nem na toalha molhada pendurada nas costas de uma cadeira. Ou no livro meio lido. Era como um quarto de hospital após a enfermeira ter passado por lá. O soalho estava limpo, as paredes brancas. O armário fechado. Os sapatos arrumados. O cesto do lixo vazio.
A limpeza obsessiva do quarto era o único sinal positivo de vontade em Estha. A única ténue sugestão de que ele teria, talvez, um Projecto de Vida. O murmúrio apenas da sua relutância em subsistir com as migalhas oferecidas pelos outros. Na parede junto à janela havia um ferro e uma tábua de engomar. Um monte de roupa dobrada e amachucada aguardava a vez de ser passada a ferro.
O silêncio pairava no ar como uma perda secreta.
Os terríveis fantasmas de brinquedos impossíveis-de-esquecer apinhavam-se nas pás da ventoinha do tecto. Uma catapulta. Um koala Qantas (de Miss Mitten) com os botões dos olhos soltos. Um ganso insuflável (rebentado com um cigarro de polícia). Duas esferográficas com ruas silenciosas e autocarros vermelhos de Londres boiando para cima e para baixo.»
[Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas; trad. Teresa Cabral, BIIS, Setembro 2010;
boiando

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