«Se no mundo a lei e as cidades pertenciam às caravanas que avançavam apesar do ladrar dos cães, para ele, Elia de Mirceia, último aprendiz do mestre Lao Tse, o que importava era imitar a leveza que este ameaçara.
- O verdadeiro mestre – dissera Lao Tse na última conversa antes de morrer – não é o que força a passagem, é o que a seduz. Quando o mestre passa os cães não ladram, admiram.
Toda a tempestade pára – tinha dito ainda Lao Tse – e toda a natureza se instala observando-nos como se fosse a irmã mais velha, a que nos vê, escondida, ansiosa por assistir às nossas proezas. Quando o mestre passa os cães não ladram – repetia. – Fácil é vencer quando se é mais forte; difícil é utilizar a força para os outros não perderem; mas só isto é justo.
Elia recordava aqueles dias; a memória fixa nas palavras invulgares que ouvira. No entanto, se bem que tentasse, no corpo algo resistia a aproximar-se do que Lao Tse lhe ensinara.
Gabava-se de ser diferente dos outros, mas não. Era, aliás, neste particular, semelhante ao moscardo da fábula de Esopo que em cima da roda de uma carroça em movimento exclamava, tão orgulhoso quanto cego:
- Que poeira eu levanto!
Também Elia pousava em algo bem mais poderoso que ele: as palavras de Lao Tse.
Durante anos tentou a sabedoria. Todas as noites lia parte do texto que o mestre lhe deixara. Porém, como Ulisses, o Astuto, que se amarrara ao mastro do barco para poder ouvir os segredos do mundo contados pelas sereias (evitando, assim, o risco de ser atraído para a morte certa), também Elia de Mirceia recusava entregar-se por completo; e se todas as noites ouvia os segredos do mestre, todas as noites ainda parte do seu corpo se agarrava a algo que marcara o seu passado: a ambição e a força, e ainda: a indiferença perante o invisível e o alto.
Deixara a crueldade que está em tantos, mas não conseguia ser o santo que tão poucos são.»
[Gonçalo M. Tavares, Histórias Falsas; BIIS, Setembro 2010;
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