«A multidão ficou então contente como sempre fica quando a sua opinião, que é também ao mesmo tempo a sua estupidez, se mostra mais forte do que a ideia de um homem isolado; e rapidamente esqueceu o assunto. Para a cidade, o valioso cofre que Arquitas protegia, de conteúdo desconhecido, desaparecera para sempre nas águas.
O que a seguir relatamos passou-se três dias depois.
Arquitas parou no sétimo degrau e, virado para o filho do barqueiro, disse:
- Quero oferecer-te um tesouro.
O rapaz exclamou, de imediato, alto, com tanto entusiasmo quanta imprudência:
- O cofre!
Arquitas pediu silêncio e passou-lhe o cofre para as mãos.
- Lá dentro está um livro importante. Guarda-o ao lado da tua vida como se fossem duas coisas iguais. Entrega-o depois a um único homem. Mas apenas estiveres próximo da morte. Quando souberes o que é um sábio. O rapaz ouviu tudo, atento. Tinha a idade estranha em que os segredos e as promessas são de ouro; intocáveis.
O tempo passou, entretanto. Esquecidos nos vivos – Arquitas e o filho do barqueiro – ao ritmo que a natureza da morte e das sucessivas geraçõees exige, perdeu-se, em definitivo, o rasto de Margites, a terceira obra-prima de Homero.
Hoje, localizar o poema torna-se improvável, quase impossível. No entanto, duas certezas: a primeira é a de que um único homem possui o cofre.
A segunda é uma certeza que nasce de quem se informou o suficiente: de entre os descendentes e amigos do filho do barqueiro nem um aprendeu a ler.
É, pois, provavelmente, no meio de uma família de camponeses, pessoas simples e analfabetas, que se poderá encontrar o livro mais procurado da história.
Se ela ainda não foi encontrado é porque quem pesquisa vasculha em bibliotecas, em sítios nobres e cultos.»
[Gonçalo M. Tavares, Histórias Falsas; BIIS, Setembro 2010]
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