13 de dezembro de 2011

Papiro do dia (161)

«“Era um dia de primavera. O Exército Vermelho já deixara o Afeganistão e os mujahedin ainda não tinham tomado o poder. Eu acabara de voltar de Leninegrado. Não posso explicar aqui, neste caderno, a razão da minha ida para essa cidade. Voltemos àquele dia em que te encontrei pela primeira vez. Já lá vai quase ano e meio. Foi na biblioteca da universidade de Cabul, onde eu trabalhava. Vieste pedir um livro e levaste o meu coração. Quando te vi, o teu olhar, fugaz e recatado, intimou-me a deixar de respirar; o teu nome, Sufia, impregnou o meu sopro. Tudo parou à minha volta, o tempo, o mundo… para que tu, e só tu, pudesses existir. Sem te dizer uma palavra, segui-te até à sala de aula; até te esperei à saída do curso. Mas era impossível aproximar-me de ti, abordar-te.
Foi esse amor que me levou a instalar-me neste quarteirão de Dehafghânan, no sopé da montanha de Asmaï, a dois passos da tua casa. Nessa época vocês moravam noutra casa, aquela que dominava a cidade, muito perto dos grandes rochedos que eu queria talhar, como Farhad, para esculpir a tua efígie.
Todas as manhãs acompanhava-te discretamente à universidade e, da parte da tarde, a tua casa. Não tomavas o autocarro, talvez propositadamente. Cabelos cobertos por um véu ligeiro, olhos pregados no solo, caminhavas lentamente. De coração embalado por seres acompanhada – mesmo à distância – por mim, o teu apaixonado, não é verdade? Mesmo assim, certo dia ousaste provocar um acidente para que eu pudesse meter conversa contigo. Um estratagema muito clássico: deixaste cair o teu caderno no chão, esperando que eu fosse apanhá-lo e devolver-to. Mas não, o golpe não surtiu efeito! De facto, apanhei-o, mas nunca to devolvi. Levava-o comigo, apertado contra o peito, como o Corão. E é nesse caderno que te escrevo”.
Trata-se do mesmo caderno em que pegou há pouco para anotar: “Hoje matei nana Alia.”»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011;
o caderno dela

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