8 de maio de 2013

Nem sempre a lápis (365)

até Jajouka
(2006)

25. E de repente, bloqueio. Abro o e-mail, onde um link me direcciona para o blogue da frenesi [entretanto desactivado] e bloqueio, literalmente soterrado por uma imagem vagamente esquecida; tenho uma cópia mas não faço a menor ideia por onde possa andar. A foto fala por si, e pode ler-se nas expressões dos artistas, como nos chamou o artista que fez questão de posar connosco para a posteridade, o que ela nos reservou.
«Inverno de 1975 – De pé: o desenhador Nuno Tabaquinho, um desconhecido ocasional à hora do “metro operário”, Jorge Fallorca o portador do estandarte lendário. Na primeira linha: João Ruas, António Coelho, ou Tó Coelho (falecido recentemente), Paulo da Costa Domingos.»

Segundo o horário estabelecido na legenda, a foto documenta uma habitual directa de charros e muita criatividade, do lado oposto de uma estação de metro que já não existe ou sufocaram-lhe o grito. Suponho ter sido tirada pela Margarida Lagarto, a musa inspiradora do Tabaquinho. Conduzia-o à trela e ele aproveitava a ausência dessa fada mazinha da casa onde vivíamos – onde sobrevivíamos – na rua Gomes da Silva, ao bairro do Arco do Cego, para se vingar da imagem que cultivavam, como um puto mimado e mal-educado. Até fazia dó. Corneava-a como um obsessivo, com toda e qualquer vassoura de saias, na alcova artística donde pretendiam transmitir a imagem de uma relação obviamente diferente dos flutuantes residentes e frequentadores desse sótão. Muitas vezes, quando entrávamos éramos obrigados a fazer uma autêntica gincana entre sacos-cama que ressonavam ao cimo da escada e no corredor; a fazer ouvidos de mercador aos gemidos dos casais que apareciam por lá especificamente para dar uma foda que, por vezes, partilhavam reconhecidos com a famosa hospitalidade da malta da Gomes da Silva. Mas na Gomes da Silva não se swingava, tínhamos apenas aquele swing natural de estarmos permanentemente pedrados.
Olhando a foto, confronto-me com uma torrente de imagens que me interrompem o curso do texto. Não sei se comece pela casa, o sótão – que durante algum tempo explorou a fama de ter dado guarida ao Vaneigem ou outro dos situacionistas que vieram fazer turismo político até ao 25 de Abril – numa altura (o famoso Verão quente) em que tudo o que eu pretendia era voltar as costas a uma encruzilhada. (...) Francamente, não sei por onde começar, ou até mesmo se deva começar, porque «ainda hoje há algo de ilusionista e ilusório na relação com o tempo e o espaço quando viajamos e é por isso que, cada vez que regressamos, não temos bem a certeza de termos realmente estado fora», recorda-me Austerlitz. É certo que quando regresso sinto-me ainda mais estupefacto por encontrar tudo absolutamente na mesma, como se permanecesse estagnado e alheio ao tempo em que me excluí.
Na Gomes da Silva, como era familiarmente denominado esse sótão no bairro do Arco do Cego, quando me mudei para lá ainda era palpável o conflito entre a memória de comunidade deixada pelo clã que a particularizara e os costumes impostos pelos novos bárbaros. Uma das coisas que me surpreendeu, e surpreendia quem lá ia, era que as portas de cada quarto, de cada cela, estivessem fechadas a cadeado, em flagrante desrespeito pela privacidade de uma porta fechada; à chave ou não. Enquanto o Tó Coelho, por exemplo, assegurava a continuidade dessa memória sem cadeados, o João Ruas, que nunca cheguei a perceber quem era na realidade, rapidamente viria a desempenhar o papel de guru, trazido pela mão do Tabaquinho e especialmente receptivo a guias culturais e novidades. Sobretudo as importadas e ainda a cheirar a carimbo no passaporte, na medida do possível vindas de Paris e observadoras in loco do Maio de 68.
Mas talvez seja melhor pegar em cada um dos artistas e tentar descrevê-los tal como os via ou nos vemos, naturalmente disfarçados, tanto mais que sou o autor do texto.
O estudante de Belas-Artes Nuno Tabaquinho, ilustrou o hors-texte do meu primeiro livro (Imitação da Morte dos Outros) com capa do Carlos Ferreiro editado pela & etc., praticamente na véspera de abandonar a Gomes da Silva de braço dado com a Olga e o nosso filho na barriga, decidido a meio dos Concertos para 2 Cravos, J. S. Bach. Contam-se pelos dedos de uma mão, e sobrarão, as vezes que voltei a vê-lo. Retenho apenas duas situações: um encontro num restaurante de Entre Campos, onde a neblina do álcool me impedia de ver como ele se debatia com uma manada de garranos nas veias; e um pouco mais tarde, quando já libertado das miragens etílicas, o vi tentar abrir-me a porta do carro para me cravar uma nota, que eu também não tinha, num semáforo da mesma zona da cidade. Muitos anos depois, parámos acidentalmente em Estremoz para beber uma bica numa pastelaria. Dando-nos a entender que nutria por ele uma condescendente ternura, a empregada não nos soube dizer se concretizara ou não o projecto de ir dar aulas para São Tomé – decisão a que (também) não era alheia a tentativa de continuar ou finalmente comer uma ex-colega da Olga, visita lá de casa –, acrescentando, com aquela naturalidade alentejana a quem não perguntou mais nada, «que ele estava muito melhor, embora tivesse dias que era uma pena. Mas sempre muito brincalhão», fez questão de frisar.
A segunda figura, o verdadeiro artista, não faço, nem nenhum de nós fazia a menor ideia de quem fosse. Recordo-me apenas que o metro estava ainda consideravelmente vazio àquela «hora operária», o que talvez nos tenha permitido entrar na estação devidamente caracterizados, e ele terá visto a possibilidade de chegar ao emprego, impecavelmente penteado e com o jornalinho dobrado, com uma belíssima história para contar aos colegas: que tinha entrado num anúncio?, num filme?, num beco sem saída? Não faço ideia e lamento que não tivesse podido levar uma cópia da foto para provar aos colegas que era verdade o que dizia, mas não teria evitado que lhe fizessem a cabeça em água durante algum tempo, até ele mesmo, admito, começar a duvidar se pousou ou não na foto onde o vemos.
É o único que não está disfarçado, o único que não faz de conta, ao contrário de mim, por exemplo, que me encontro devidamente disfarçado de funcionário público e identificado com o cartão da Emissora Nacional – ou seria já RDP, onde continuei mais de uma dezena de anos a fazer de conta? – na lapela de um casaquinho de ganga oferecido pelo Ferreiro em Paris, fazendo questão de não abrir o bico; tudo o que tinha a dizer resumia-se a um premonitor balão em branco.
Eles que escrevam, eles que digam.
Na primeira linha de baixo, com a sua proletária samarra e uma oportuna pala de pirata num olho, que não me lembro se já trazia com ele ou não, o João Ruas, acocorado com umas blue-jeans e botas caneleiras que não vemos, num antecipação filosófica de Bruce Springsteen dos anos setenta. Poucas semanas depois fomos a Paris, fornecendo eu o carro e uma quota-parte para o Ruas comprar erva, que se encarregou de vender e fumar aos e com os amigos, e eu estafei a minha percentagem com uma artista de St. Denis e uma série de livros, discos e tabaco de cachimbo que me tinha ficado no goto quando lá estive em Setembro de 74, em casa do Ferreiro.
Nunca fui grande espingarda para os negócios, é um facto. Cedi o carro, prensámos mais de um quilo de erva numa espécie de bolacha, de pizza a tresandar a resina na oficina do meu pai, quando passámos por Mortágua a caminho de Vilar Formoso. Na fronteira, havia fronteiras, o Nuno foi interrogado pela polícia por causa do irmão – Armando Tabaquinho; deu-lhe para aderir às BR’s e auto-proclamava-se desertor na Gomes da Silva, só saía à noite para ir beber copos no Pote e na Munique – correndo o risco de irmos todos de cana. O Nuno, sempre brincalhão, resolveu responder à bófia, com os olhos fosforescentes e os bolsos cheios de erva para a viagem, que mesmo que soubesse onde estava o irmão não lhes dizia.
Creio ser todo o seu curriculum revolucionário.
Quando finalmente passámos a fronteira a proeza foi elogiadíssima pelo Ruas, que enrolava charros com uma mão e conduzia com a outra, enquanto eu, encolhido no banco de trás do meu velho VW (parecia retirado de uma página do Crumb) e a cabeça apoiada na almofada de erva o ouvia dissertar sobre Vaneigem, Cohen-Bendit, dizendo que Assim falava Zaratustra, e eu acreditei, quem era eu para pô-lo em dúvida?, enquanto o Nuno cofiava o bigode – não o da foto, o real – e o seguia deslumbrado e eu francamente cansado. Foi tal a canseira que nunca mais nos vimos. Foi como veio, retendo dele apenas o zumbido contínuo da palestra ou seminário em que converteu a viagem, quando não dormia e eu conduzia silenciosamente a saborear a pedra; a viagem.
O melhor disfarce do Tó Coelho era a ironia. No Inverno usava um sobretudo apertado até ao pescoço, que lhe dava um inconfundível ar de almotolia, e é dele a autoria da frase que transcrevi lá para trás, quando a erudição começava a rançar e a estragar o bom da pedra: «Eu já disse isto tantas vezes, que também já me posso citar a mim mesmo.» Nunca fomos especialmente próximos, e nunca mais o vi desde que desertei da comunidade, embora o Paulo me fosse dando notícias quando me lembrava de perguntar por ele, obrigando-me a ligar-lhe para explicar a razão do parêntesis na legenda. Morte macaca, contrariando todos os prognósticos que lhe podiam pôr a saúde em dúvida, mas não o fim que não merecia a justiça de lhe utilizar a citação.
Finalmente o Paulo, com uma camisola que comprei ao Tabaquinho e ele adorava vestir quando íamos dar uma volta muito pedrados e punha a cabeça de fora do VW para arejar a juba, enquanto me concentrava ao volante para tentar não amarrotar aquela autêntica página de banda desenhada por entre o trânsito. Conheci-o ainda na Mãe d’Água, onde nasceu e crescia a revista & etc., numa das minhas viagens de contacto – na altura tinha acabado a tropa e fazia de conta em Estremoz – com a grande cidade e os escritores. Estava ansioso por conhecer escritores, pintores, artistas, críticos, chupa-tintas, jornalistas, pantomineiros, etc. Queria ser como eles. Felizmente, como o acesso (aparentemente) era mais fácil pelo & etc., entrei depressa nos eixos. A segunda vez, encontrámo-nos, acidentalmente, na esplanada do Pão de Açúcar, na Alameda, com uma djellaba a cheirar a Tânger e o hálito de um charro afegão que me dispensava as palavras. Depois de tudo o que passámos e fizemos juntos, ele era das poucas pessoas com quem podia estar mais de um ano sem nos vermos ou falarmos, e quando nos encontrávamos, satisfeita a natural verborreia inicial, era possível deixar pousar um silêncio sem que ele tivesse necessidade de tirar a venda kamikaze, nem eu precisasse de sujar o balão em branco.

1 comentário:

Areia às Ondas disse...

Todas estas linhas não são escritas, não foram escritas, são imagens em forma de letras. Os livros de História deviam ser assim, para se lerem de supetão, para se visualizar o que foi, o que é, o que será sempre. Como eu gostei de ler isto!