11 de maio de 2013

Nem sempre a lápis (366)

até Jajouka
(2006)
 
26. Entretido à espera de arrancar até Jajouka, lembro-me que a imagem mais agradável – praticamente, única e indelével – que conservo da minha excessivamente longa permanência em Lisboa, é a de um vulgar entardecer, no final de Setembro ou princípio de Outubro de 74, com um banco sob a copa de uma árvore enorme, logo no começo do jardim do Príncipe Real, vindo do Rato.
Tinha um quarto ali perto. Enquanto pude, recusei ter uma casa e deambulei pelos mais variados quartos – de pensões, alugados, emprestados, vagamente partilhados, cheguei a dormir com a Nico no armazém da & etc., um antigo estábulo de fidalgos na rua da Emenda –, até à iminência do nascimento do Diogo. Só em Dezembro de 76 alugámos o opressivo e deprimente 7.º andar em Carnaxide, Praceta Gomes Leal, onde cheguei a alimentar a esperança de me sentir em casa; a compra, forçada, uns dois anos depois, gorou todas as possibilidades de me sentir em paz e integrado numa casa, como me sinto aqui, no Monte Alto.
Tinha um quarto ali perto, numa das ruas do quarteirão que delimita um outro jardim – o das Amoreiras, pelo qual não nutria especial simpatia, talvez pelo risco de tropeçar nos inteligentes que conspiravam num bar da zona –, e quando acabava o período de reclusão no edifício da antiga Emissora Nacional, no cruzamento da Duarte Pacheco com a Artilharia 1, gostava de descer a pé até à Livraria Opinião, à cervejaria da Trindade e, raras vezes, até à Brasileira do Chiado, a saborear uma Lisboa ainda semi-adormecida, mas com as paredes já irreversivelmente tatuadas pela fulgurante passagem da revolução.
Admito que possa ser uma mania minha, uma obsessão, uma perspectiva de lesa-majestade, por insistir em considerar que o 25 de Abril durou a estupefacção e explosão de alegria que decorreu entre essa manhã e a tarde do primeiro 1.º de Maio; a tarde em que a Revolução foi loteada, adeus ó vindima. Fui variadíssimas vezes ameaçado e apelidado de tudo e mais alguma coisa que, concedo, só o delírio febril que então se vivia poderá justificar. O futuro encarregou-se de comprovar, para mim foi inequivocamente revelador do verdadeiro íntimo das tais excrescências revolucionárias que, também elas, foram determinantes para os compadres da Alameda lhe lavrarem a certidão de óbito, oficializada e tornada pública com o tétrico e vagamente chileno 25 de Novembro. Vagamente, porque nos ficamos sempre e em tudo, apenas pela encenação, artesanal e barata, mais por amor à camisola do que verdadeiramente ao corpo que, como se sabe, deve ser quem mais ordena.
Eram caminhadas deliberadamente lentas – alheias a qualquer desconhecido pretensiosismo walseriano –, não só porque não sabia nem queria ter nada para fazer, mas sobretudo para saborear as montras das pequenas mercearias, cafés, drogarias, cabeleireiros, retrosarias e tascas que, a partir da tríade habitual, constituída por antiquários, lojas de decoração e a galeria de arte (muito dada aos surrealistas e onde vi desenhos de Michaux), começavam a transmitir vida vivida à rua. Ela ainda era percorrida pelo vaivém ronceiro dos eléctricos apinhados de gente e mãos-leves, para rabos e carteiras, com penduras nos estribos de um eléctrico que se prezasse, sem que o revisor jamais se atrevesse a repreender esses camaradas; revisores e penduras, encontravam-se todos, mas todos ao lado do povo. Essas caminhadas, quando saía com entrada condicionada, por me encontrar detido pelo trabalho na E. N. logo a seguir ao 25 de Abril, começavam, invariavelmente, por me abastecer com um copo, demorado e autista, sentado – quando não ocupada pelo casal residente, a Paula Almada Negreiros e o Álvaro Cabeça de Vaca – à mesa de pedra junto à janela da taberna na esquina do largo do Rato com a rua de São Mamede, entretanto travestida de não sei quê, porque fizemos sempre questão de manter a fachada.
Nessa tarde, a tarde em que me sentei num banco sob a copa de uma árvore enorme do jardim do Príncipe Real, sentia-me possivelmente radiante por ter apanhado o elevador para o refeitório e ter sido alvo de provocações de elementos do MRPP, ter subido do refeitório e ter sido alvo de provocações de elementos do PCP, sendo a ordem absolutamente arbitrária e entediantemente repetitiva sem que alguma vez me desse por achado. Encontrava-me ainda deslumbrado pela facilidade com que tinha chegado à cidade e arranjado um emprego vistoso, não os conhecia de lado nenhum e recusava-lhes qualquer espécie de proximidade, escolhendo cuidadosamente a mesa onde me sentava, preferencialmente sozinho, a almoçar. Nessa altura, e se é que ainda tinha dúvidas quanto à minha ocupação, o Vitor [Silva Tavares] ficou ao corrente até que ponto eu fazia de conta na E. N. Lembro-me que era sábado e me tinha calhado o castigo rotativo de ficar a olhar para os jornais e a olhar para a rua, empoleirado num estirador quatro andares acima do passeio da Duarte Pacheco, quando ele me telefonou, muito excitado, a perguntar se eu sabia alguma coisa sobre uma tal silenciosa Manifestação Silenciosa. Jurei-lhe, a pés juntos, não ter ouvido nada; absolutamente nada.
Descia eu esse demorado percurso – que me separava da agreste incompatibilidade com a realidade para me entregar progressivamente na imensidão do devaneio ao entardecer, como jovem poeta que era – quando, percorridas talvez centenas de vezes o mesmo irrepetível percurso; quando terminado o pano de casas onde a rua cede o nome ao jardim, dei com o tronco levemente tombado e as raízes mais ansiosas pela secular autonomia a aflorarem o chão, num esforço irreprimível que levantava a calçada do passeio. Possivelmente, esperei que os automobilistas desrespeitassem a prioridade dos peões, admitindo que me tenha dado jeito prolongar o sabor da chegada, como os passageiros aguardam que o navio atraque e encostem a escada ao portaló; a manga seja acoplada à fuselagem do avião; o comboio pare e as portas se abram com um silvo pneumático, e só depois percorri os poucos metros de asfalto listado para me sentar no banco vazio que me aguardava sob a copa de uma árvore enorme do Príncipe Real.
Era um velho banco com ripado de madeira, assente numa estrutura de ferro fundido pintada de verde ou alumínio, igual aos bancos que faziam parte do mobiliário urbano de uma Lisboa provinciana, onde se pretendia que os costumes eram brandos, mas o Império embravecido desmoronava-se a olhos vistos, sem necessidade de assomarmos à rua da Misericórdia para nos compadecermos com o vazio do rio. Aproximei-me dele como dois desconhecidos com encontro marcado se reconhecem à medida que entre eles diminui a distância e a reserva inicial, e sentei-me sensivelmente a meio, abrindo os braços como se avaliasse a dimensão do assento e os meus dedos procurassem decifrar nos veios de madeira descuidada, sinais ou memórias que o dourado do entardecer ajudasse a reconhecer, encaixilhadas para o futuro. Permaneci ali até o banco e eu darmos por terminado, saciado o tempo que, possivelmente, ambos necessitávamos, sem darmos pela diminuição do trânsito, das filas para o eléctrico e para o autocarro; sem nos apercebermos que o lento violeta dos candeeiros cedera ao amarelo coalhado que iluminava a noite; noite da tarde em que não desci até à Livraria Opinião, à cervejaria da Trindade, menos provável ainda à Brasileira do Chiado, como se, inconscientemente, antecipasse a leitura de um livro de John Berger, onde viria a compreender que, também eu, esperava que «dentro de uma ou duas semanas, África, que começa, digamos, na outra margem do Tejo, começasse a impor a sua presença, distante, mas palpável.»

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