29 de maio de 2013

Nem sempre a lápis (371)

(edição policopiada, Coimbra 1972)
 
praias. cigarros. armas. uma tarde de maio. um filme talvez ainda não visto.
qualquer coisa muito breve – música – com armas nas praias
ouves? tem sido sempre isto. toda a tarde.

quando deslizámos pelo cheiro forte do pequeno almoço.
quando partimos, uma noite qualquer, de qualquer noite.

pedras cigarros, praias armas, tarde de maio inventada.
entretanto, nós ainda não estamos mortos.
– ouves? são os mortos amados. o delírio que se segue à fraqueza.

fumo por vocês estes dias. a tua cidade.
porque há uma cidade no meio das palavras – tu me disseste um dia.

essa música, árvore de todas as bocas.
deixem-me passar. tenho frio. veja, estou doente.

com as cores correndo atrás dos dias trespassados por um grito, como um jardim de flores violentas.

um campo abandonado, qualquer coisa decisiva, a espuma, talvez. a ardósia da boca.

aves sonâmbulas que se agitam nas minhas veias. pedras armas. sonho tão breve.
sei para onde tu foste. é bom.

mão aberta para a boca em chamas. corpos delirantes, omnívoros. desengano, insónia, tédio, o peso trágico da tua voz, depois disso:

viviam num oceano com o silêncio dos textos, as gramáticas loucas.
viviam de tédios fáceis criados entre as árvores e as mãos podres.

– nunca antes me apercebera dessa veloz ansiedade. um peso, digamos: a tarde toda à tarde.

estátuas quentes – os gestos – como se de um campo de nomes se tratasse. de uma violenta e terna fome de ti, árvore desta tarde.

não soube nunca voltar-me para a cidade, perceber-lhe as intenções. a música salgada, quando os mortos nos ocupam a memória como estrangeiros inevitáveis.

nunca vi no vento a palavra liberdade.
a cidade levou a voz de cada um.

mar. exílio. a tua voz no sobressalto de outro corpo.
choveu muito durante a minha infância. tardes de maio distante.
– nunca saberei dizer-vos adeus.

uma viola canta nos corredores lentos:
o jardim. o pátio. armas do vento, quando esta música desprevenida nos toca.

é então que se torna violenta a vossa ausência.
é então que é preciso criar palavras, portas, imagens quentes.
– e maio torna-se um mês de uma angústia violenta.

esta ideia cresceu pelo lado de fora dos prédios. habitou as mais longínquas liberdades. deu flor nos sons verdes da minha infância.

ouves o grito da tarde?

sons de uma voracidade atroz. terraços. pedras. memória despertada pelas tábuas proibidas.

mãos atentas em volta de um círculo de camélias geladas.
tudo agonia, vómito sustido a custo.
árvore dentro de outra árvore que não suportou o vento.

ouço a tua tarde no vento da minha tarde. ouço a tua tarde.

os mortos gritam, enchem a memória com a sua verdade alta, com gestos recortados, manchas apodrecidas por outras manchas.

olhamos com terror os lugares vazios, os rostos perdidos:
olhamos o terror dentro da própria tarde.

dentro da cidade devoram-se pequenos peixes de alma exterior.

o que antes tinha vida está agora morto.

– lugares de pesadelo e sonho. lugares sôfregos.

vivemos entre os mortos.
gente morta. que já morreu ou morrerá subitamente durante a nossa lenta morte.

estamos cercados de mortos. pela própria morte. pouco a pouco morremos dentro de nós, embriagados por esse pequeno suicídio íntimo.

porque há uma cidade no meio das palavras – tu me disseste um dia.
quando falavas atravessavas a noite.
se te calavas, outro engenho maior. diferença de pássaro. flor transmudada.

a tua voz rói a minha dentro da tua voz.
a tua voz rói as palavras no caos. elegia precipitada.

o que em ti dá fruto, o que se sabe, é uma palavra cega.
uma tarde de maio, na doca das minhas mãos queimadas.

ardemos para cima. andares de morte, descoberta, fastio.
depois, isso: mudos, quietos, os olhos estoirados de espanto. abismo de reticências.

ouves? toda a tarde. toda a tarde.

primavera da distância, quando o que freme, o que realmente nos incendeia, são as vozes mortas:
praias. armas, cigarros. tardes de maio –
essa borboleta exangue.

bancos das gares por onde passaram.
onde dormiram. os corpos
contagiados pela mesma fome. o mesmo sonho.

vi-os em magotes. os rostos lívidos. drogados.
ou simplesmente nus. o sexo e a mente em chamas.

a morte arde em maio, como uma rapariguinha descobre as mãos:
um frémito de surpresa.

o terror entrou na nossa idade como um exército opressor.
mãos agachadas de sangue, ainda sustiveram alguns dias.

depois foi o pesadelo em marcha:
praias. abundância. monstros vivos.

agora tenho medo. – ouves?
o nosso tempo foi uma joint chupada a intervalos numas águas furtadas.

mais nada. nem saudade nem esquecimento.
nem remorso nem liberdade.

porque há uma cidade no meio das palavras – tu me disseste um dia.
porque há uma cidade, porque há palavras no meio de uma cidade, porque tu me disseste um dia, e havia palavras numa cidade e o meio das palavras, porque tu me disseste um dia
 
[Fruta da época, frenesi 2004]

2 comentários:

alexandra g. disse...

que poema lindo, Fallorca :)

não conhecia ainda nenhum dos seus poemas.

fallorca disse...

Mas há mais reposições; se consultar «Água tatuada».
bj