14 de maio de 2013

Nem sempre a lápis (367)

até Jajouka
(2006)
27. O início do quarto crescente – com a Lua resumida a uma unha roída pendurada no lusco-fusco, a anteceder o gradual e perturbante esplendor da lua cheia – é um dos motivos mais estimulantes para pegar na cadeira de tabua e sentar-me lá fora para me esvaziar do esforço de ter cumprido mais um dia. Os outros são os infindáveis crepúsculos vistos daqui.
Partilho, como toda a gente, memórias inesquecíveis de crepúsculos e luas cheias que me colheram nos sítios e situações mais inesperadas. Para não falar dos que procurei, chegando a percorrer quilómetros, como tanta gente, para me sentar numa praia, numa falésia, no cimo de um cabeço, com a mesma ansiedade e entusiasmo de quem se desloca a um espectáculo, a um concerto único e intransmissível. Estou a lembrar-me, por exemplo, dos Police no estádio do Belenenses quando, um pouco antes do espectáculo começar, toda a gente viu uma rulote de bifanas descer a avenida levada em ombros pela torrente humana literalmente, walking on, walking on the moon e, já sentado nas bancadas de frente para o rio, vi, como toda a gente viu a Lua cheia poisar sobre o palco, ao mesmo tempo que passava um cargueiro, na mais fantástica, real e inesquecível montagem; com uma precisão que nenhum espectáculo multimédia, como então começava a estar em voga e hoje julgo repetirem-se até à exaustão dos efeitos especiais, jamais se poderia dar à vulgaridade de sincronizar.
Mas, se nesta situação as testemunhas, felizmente, abundam e é (era) frequente encontrar pessoas com quem, a meio da conversa, nos sentíamos subitamente ligados pela mesma corrente que electrizou o estádio do Belenenses, infelizmente, tive de me aguentar sozinho com as labaredas de uma lua cheia que pareciam incendiar o montado à volta de Terena, quando regressava a Reguengos de Monsaraz depois de jantar no Alandroal e ter ido até Badajoz só para passar o tempo. Inconscientemente, começava a sentir-me manifestamente incapaz de continuar a fingir que me interessava o tipo de convívio, a que então me forçava a actividade como responsável pelo gabinete de imprensa da prova alentejana de todo-o-terreno.
Sim, também passei por essas; entre outras.
A Lua surgiu-me inesperadamente ao nível do chão calcinado do montado; que eu quase jurava ter visto revolto e empoeirado pela surpresa, revelando as árvores espectrais no contraluz avermelhado de uma incomensurável câmara escura. Só tive tempo de corrigir a trajectória para não ir parar à valeta, enquanto me debatia com uma inexplicável (para mim) falta de rede das operadoras nacionais, abafadas pelas suas potentes e úteis congéneres espanholas, que me impediu de tentar partilhar o espanto, a surpresa com a Olga que, àquela hora, devia dormir absolutamente alheia às minhas habituais e imprevisíveis digressões nocturnas de antanho.
Não senti a ausência de um ou dois anos antes, quando despertei e dei por mim com o carro a trabalhar, à beira da estrada entre Saragoça e Barcelona, em plenos Mons Blancs. Ainda hoje, não me lembro do motivo que me levou a atirar com o carro para a valeta, e muito menos quanto tempo assim estive, até voltar a sentar-me ao volante e percorrer os restantes quilómetros que me separavam de Barcelona, entretido a brincar às escondidas com a Lua, que não me lembro se estava cheia ou se se esvaziava, como eu mais tarde comecei a desconfiar que me esvaziava de um determinado tipo de vida. Demorei alguns anos a contar este episódio à Olga, talvez porque «ninguém sabe explicar ao certo o que se passa connosco quando se abrem as portas que escondem os terrores da nossa infância», se é que Austerlitz não se enganou, e o mesmo se pode dizer de quaisquer portas da nossa existência, presente ou futura.
Saímos do Monte Alto com a melhor das intenções de irmos ver a Lua a Sines, decididos a não perder o Festival de Músicas do Mundo – agora já não havia desculpa, com ou sem os Master Musician of Jajouka –, percorrendo a velha estrada litoral a partir de Lagos, fazendo o percurso inverso ao que me revelou o reino do Al-Gharb, há cerca de trinta e cinco anos, sem que eu pudesse adivinhar que viria a viver exactamente a meia dúzia de quilómetros do Carvoeiro, que serviu de pretexto para arrancar de madrugada de Coimbra, rumo ao Sul. Enquanto a Olga sorria, a ver-me guardar o bloco e o lápis e a instamatic na mochila, para o que desse e viesse, prudentemente foi arrumando as toalhas e uma garrafa de água para o que veio: duas horinhas de praia na Amoreira, a catar pedras e a reviver histórias, a dar banho à nossa rotina.
Quando chegámos a Sines, estacionei sem dificuldade atrás do palco montado na marginal sob a falésia, onde se degrada, entregue ao vazio ou à indecisão tão habitual entre nós dos herdeiros, não sei, a casa que conheço como sendo a do avô do Al Berto. Sem me deixar abalar pelo medo das janelas vazias a olharem desorbitadas o entardecer, lembrei-me, inevitavelmente, de ali termos estado quase todos os que deram corpo às primeiras folhas volantes frenesi, então expostas no Centro Emmerico Nunes, onde fui ter com eles como jornalista do Diário de Lisboa limitado a meia dúzia de bytes. E enquanto ouvia a electrizada e electrizante saharauí Mariem Hassan, os meus olhos deliciaram-se a ver os netos que não tenho e os filhos que não tive, juntamente com os companheiros que fui perdendo pelo caminho, ou nos separámos na encruzilhada onde enveredámos por outro caminho, reconhecendo-nos na cumplicidade de um olhar onde já não há lugar para o medo.
E a Lua?
A Lua espreitava-nos por entre o cotão de curvas desde o Cercal até à entrada de Odeceixe, como se viajássemos dentro deste velho texto, escrito na Hermes 2000 que herdei do meu avô:

«Tenho uma visão (a cores) para António Reis:
sigo por um caminho velho, sob um azul forte. Ao longe, há uma povoação dos meus contos infantis e, indistintamente, de uma gravura antiga. O pó levanta-se atrás de mim, para onde vejo, e ouve-se o malhão. Se parar, cessará imediatamente, sei-o de um pavor anterior à visão. Nesse silêncio, ouvir-se-á o matraquear da Hermes 2000, que vem de cima e está fora de campo, embora se ouça ininterruptamente. O azul vai-se pondo, e quando regresso - trôpego, com a madrugada - mantém-se ao longe o arraial para onde vou.»*

A Lua espreitava-nos por entre os cerros do Cercal ate à entrada de Odeceixe, onde ainda subsistem, heróicas e feridas – o presente dedica-se a correr o passado à pedrada – as placas que insistem em indicar as desactualizadas distâncias que já não me separam do Algarve.

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