30 de novembro de 2013

Papiro do dia (418)

«Depressa percebi que o desgosto seleciona e reorganiza os que estão à volta de quem sofre; que alguns passam e outros reprovam. Velhas amizades podem intensificar-se através da dor partilhada; ou revelar-se de repente superficiais. Os novos são melhores que os de meia-idade; as mulheres são melhores que os homens. Não devia ser surpresa, mas é. Afinal, esperávamos que os mais próximos em idade e sexo e estado civil percebessem melhor. Que ingenuidade. Lembro-me de uma “conversa, à mesa de jantar” de um restaurante, com três amigos casados que tinham aproximadamente a minha idade. Todos a conheciam há muitos anos – talvez oitenta ou noventa, no total – e todos teriam dito, se lhes perguntassem, que gostavam muito dela. Mencionei o seu nome; ninguém deu resposta. Voltei a fazê-lo e nada. À terceira, talvez eu estivesse deliberadamente a tentar provocar, irritado com o que me parecia não boas maneiras, mas cobardia. Receosos de tocar no nome dela, três vezes a negaram e, por isso fiquei com a pior ideia acerca deles. Há a questão da raiva. Alguns ficam zangados com a pessoa que morreu, que os abandonou, que os traiu ao perder a vida. Há coisa mais irracional do que isto? Poucos morrem por vontade, até a maior parte dos suicidas. Alguns dos que são atingidos pelo desgosto ficam zangados com Deus, mas, se Ele não existe, também isso é irracional. Há os que ficam zangados com o universo por deixar que as coisas aconteçam, que sejam inevitáveis e irreversíveis. Não senti propriamente isso, mas, durante aquele Outono de 2008, li os jornais e segui os acontecimentos na televisão com uma indiferença avassaladora. Por alguma razão dei muita importância a que Obama fosse eleito, mas muito pouca ao resto do mundo. Diziam que todo o sistema financeiro podia estar à beira de cair e se despenhar, mas isso não me incomodava. O dinheiro não podia salvá-la, então para que servia o dinheiro e para quê salvar-lhe a pele? Diziam que o clima mundial atingira um ponto sem retorn, mas podia atingir esse ponto e continuar, que para mim era igual. Eu voltava do hospital para casa, de carro; e num dado lugar da estrada, mesmo antes de uma ponte ferroviária, vieram-me à ideia estas palavras que repeti em voz alta: “É simplesmente o universo a fazer o seu trabalho.”»
[Julian Barnes, Os níveis da vida; trad. Helena Cardoso, Quetzal, Novembro 2013;
can you hear me now?]

 

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