9 de dezembro de 2011

Papiro do dia (159)

«Passados alguns minutos, cabeças parecidas com cogumelos poeirentos erguem-se pouco a pouco, num silêncio opressivo. As exclamações irrompem:
“Atingiram a estação de gasolina!
- Não, foi o Ministério da Educação.
- Não, foi a estação de gasolina…”
Não longe de Rassul, à sua direita, um velho, deitado, procura qualquer coisa no chão, com um olhar desesperado, resmungando para si: “Vão p’rá fava, vocês e a vossa estação de gasolina e o vosso ministério… Onde está a minha dentadura? Meu Deus, de onde saiu este exército de Yadjûdj e Madjûdj? Os meus dentes…”. Revolve a terra, sob a barriga. “Não viste a minha dentadura?”, pergunta a Rassul, que olha para ele de soslaio como para se perguntar se o velho não foi atingido. “Caiu da minha boca. Perdi-a…
- Ora, bâba, em tempos de fome e de guerra uma dentadura servirá realmente para alguma coisa?”, goza um barbudo diante dele.
“E porque não?”, retorque firme e orgulhosamente o velho, indignado com semelhante reflexão.
“Que felizardo!”, diz o barbudo, que se levanta e sacode o pó. De mãos nos bolsos, afasta-se perante o olhar desconfiado do velho, que resmunga: “Koss-mâdar, tenho a certeza que este filho da mãe me roubou a dentadura…”. Volta-se para Rassul: “Tinha incrustado nela cinco dentes de ouro. Cinco!”. Depois de lançar um breve olhar na direcção do barbudo, prossegue, numa voz cheia de pena: “A minha esposa insistia para que os vendesse para fazer face às despesas da casa. Pus muitas vezes a dentadura no prego. Logo que o meu filho me enviava dinheiro do estrangeiro, ia recuperá-la. Esta manhã, tirei-a do prestamista. Que maldito dia!”. Levanta-se e esgueira-se pela multidão, talvez atrás do homem.
Rassul apreciou a ironia do barbudo, não tanto por cinismo, mas por detestar as próteses dentárias de ouro, sinal exterior da avareza em toda a sua fealdade.»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011]