4 de fevereiro de 2011

«É bom trabalhar nas Obras (67)

«Ignacio decidiu que tinha esperado o suficiente: um minuto mais e casa. Na manhã plúmbea do Paralelo, empregados de escritório, turistas de época baixa e figuras decididamente estrambólicas, o puro gatafunho da indigência, proclamavam sem discrição o mesmo desmaio e a mesma falta de interesse; o travesti da mesa contígua, o seu único companheiro naquela esplanada hostil, cabeceava de tempos a tempos e caíam-lhe no chão, uma e outra vez, os óculos de sol inúteis. Ignacio via-se obrigado a olhar para o outro lado, para não ter de se agachar e demonstrar a sua caridade. Imaginou-se a si mesmo, bastante tempo mais tarde, a contar que uma manhã de Novembro tinha combinado encontrar-se com o seu irmão Carlos (aqui as explicações da praxe), que não via há dezoito anos (mais explicações), e o maldito Senhor Paradeiro Desconhecido fizera questão de não estar presente. Um daqueles episódios sobre o qual os seus filhos viriam a especular quando fizessem uso da razão:
- O tio Carlos, o tio Carlos… O anúncio… Um dia, o papá encontrou-se com ele.
Sussurros emocionados nas sombras do jardim, enquanto os adultos acabavam as bebidas. Ele tinha feito o mesmo com outras histórias e estava a começar a compreender: certas lendas domésticas não passavam de uma fonte de ansiedade, de imprecisões desnecessárias de uma biografia satisfatória.»
[Francisco Casavella, Um anão espanhol suicida-se em Las Vegas; em revisão para a Minotauro;

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