«Setembro, o mês em que devia ir para os Estados Unidos, começava a ser um ponto longínquo num caminho que era necessário preencher com feitos excitantes. Tinha de lhe acontecer qualquer coisa. E nunca lhe acontecia nada.
Amiúde, convencia-se a si mesmo como era fácil, como era inútil, insistir em convencer-se; e como nos preocupamos demasiado em guardar na mais escura das nossas gavetas interiores, três ou quatro verdades incómodas para não embaciar a recordação e permitirmo-nos crer, um dia, que a nossa falta de juízo comum foi adorável. Uma dessas verdades, com que Ignacio nunca se tinha confrontado, era que, graças ao desaparecimento de Carlos e ao golpe de sorte que tinha permitido tanta condescendência na família, tinha uma vida regalada, em que cada conselho e cada admoestação dos seus pais estava devidamente aferida com um objectivo: não o perder; convencer-se de que o taciturno, embora sossegado, nada respondão, se bem que nada indefeso (era tudo uma questão de convicção), o infantil Ignacio que durante duas dezenas inteiras de anos comeu bolos de chocolate a navegar nas águas seguras do sofá doméstico, um dia pudesse certificar que tinham sido pais da melhor maneira possível, que tinham amado como pais. Ele aproveitava-se.
Tinha começado o curso de arquitectura e tinha-o abandonado no segundo ano, impelido pela vontade de «ser alguém», não se limitar a olhar através do buraco a labareda e o riso, os beijos nos cantos, e a ter um nome num mundo de música, vigílias maratonistas, jovial ajuntamento nos lavabos e promiscuidades artísticas, onde cada indivíduo se pudesse destacar da forma que melhor soubesse: muita lábia, um grande penteado, beleza, desigual estilo de indumentária ou culto da imoralidade nalguma das formas artísticas mais urgentes. Ele, além do mais, tinha um grande obstáculo.
- O teu irmão Carlos, esse é que era…
E depois, deixavam cair os braços.»
[Francisco Casavella, Um anão espanhol suicida-se em Las Vegas; em revisão para a Minotauro;
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