21 de abril de 2012

Papiro do dia (210)

«Por vezes pergunto-me por que razão anoto todas estas recordações. Porque quero dá-las a ler a estranhos? Porque quero confiar em estranhos ou, se não em estranhos, em gente próxima, bons amigos? Mas confiar em quê? É para mim claro que este livro não contém confidências.
Os meus amigos ingleses por vezes perguntam-me o que estou eu a escrever. Respondo: – Um diário impessoal. Pois nada pode ser menos pessoal do que descrever este vale – um pintor saberia fazer melhor – ou as montanhas e as planícies e as estradas e os rios. Mesmo o relato da nossa vida durante a expedição em Rages está longe de ser pessoal. As noites no terraço de Persépolis? As conversas embriagadas? Que por vezes nos embebedávamos, que em ocasiões raras Bibenski fumava um cachimbo de haxixe ao fim do dia? Tudo isso é impessoal como a melancolia de Mazandaran ou o silvo estridente de um vapor russo no porto de Pahlavi. Como é impessoal olhar para a nuvem delicada que de manhã cedo contorna o cimo do Damavand para voltar a encontrá-la certa noite, por entre as sombras da tenda, como substância irreal pairando em torno dos ombros severos de um anjo…
Por isso, não me pergunto tanto por que razão me entrego ao abandono, mas sim por que razão escrevo sequer. Porque não é fácil escrever, exige um esforço terrível e provavelmente inútil. Obriga-nos a recordar, e ainda que nunca possa livrar-me nem por um momento das recordações, nem eu nem aqueles que partilham o meu destino, gostaríamos ao menos de ser poupados a esse conhecimento.»
[Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia; trad. Isabel Castro Silva, Tinta-da-China, Junho 2008;
acontece]

2 comentários:

Tétisq disse...

Muito interessante este excerto!*

F disse...

"In the company of nudists no one is naked. "