«No mesmo instante do relato, não só me dei conta de que ela pertencia ao marido, assim como eu tinha pensado demasiado nela; e às vezes, de uma maneira culpável. Então, parecia que era eu quem escondia os pensamentos entre as plantas. Mas desde o momento em que a senhora Margarita começou a falar, senti uma angústia como se o corpo se afundasse numa água que me arrastasse também; os meus pensamentos culpáveis apareceram de uma maneira fugaz e com a ideia de que não havia tempo nem valia a pena pensar neles; e à medida que o relato avançava, a água ia-se apresentando como o espírito de uma religião que nos surpreendesse de formas diferentes, e os pecados, nessa água, tinham outro sentido e o seu significado não tinha tanta importância. O sentimento de uma religião da água era cada vez mais forte. Embora a senhora Margarita e eu fossemos os únicos fiéis de carne e osso, as recordações de água que eu recebia na minha própria vida, nas intermitências do relato, também me pareciam fiéis dessa religião; chegavam com lentidão, como se tivessem empreendido a viagem havia muito tempo e apenas cometido um grande pecado.
De repente dei-me conta de que da minha própria alma me nascia outra nova e que eu seguiria a senhora Margarita não só na água, como também na ideia do seu marido. E quando ela terminou de falar e eu subi a escada de cimento armado, pensei que nos dias em que caía água do céu havia reuniões de fiéis.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]
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