13 de maio de 2010

Mano Forte

Teses sobre a visita do papa
1
Ó ESTADO, mais uma vez podes limpar as mãos à parede do cu do papa, ficarás com as mãos mais brancas para os teus crimes. Ó partidos, da esquerda* e da direita, mais uma vez podeis beijar os pés ao papa, ficareis com a boca abençoada para mentir melhor. Exploradores, escolhei o crime, escolhei a mentira. Sois livres. Tu, poeta, range os dentes e indigna-te.
2
Que o Estado venere Deus na figura do papa, que os partidos venerem o Estado na figura do papa; que os exploradores venerem Deus, o Estado, o Partido – a trindade omnipotente. Enfim, o poder temporal subordinado ao poder sobrenatural. Nem Deus nem senhor? Maldita incurável doença infantil do comunismo. Explorado, escolhe o explorador.
3
O Estado que te submete é republicano e reverencia a Igreja, o Partido em que militas é marxista e felicita o papa, o Sindicato onde estás inscrito é revolucionário e saúda a reacção. A greve geral é uma arma que não deve ferir o papa. Nada contra o obscurantismo. Paz ao inimigo. Quem disse que a religião é o ópio do povo? Exploradores, que escolheis?
4
Sobretudo, nada de escândalo. Uma pedra branca sobre o crime, uma pedra negra sobre a crítica. Ecrasez l’infâme, dizia Voltaire. Uma pedra negra sobre Voltaire. O silêncio dos ateus é o ouro do Vaticano. Explorado, escolhe a pedra para a tua cabeça.
5
Conquistar a liberdade de expressão para não usar a liberdade de expressão. Não denunciar o opressor, não ousar atirar-lhe à cara a revolta, sequer na forma de um cravo. Ver, ouvir, receber o papa com o medo de 24 de Abril. Explorado, porque não vomitas?
6
Explorado, sê manso e obedece. Pode ser que entres no reino dos céus, de camelo ou às costas de um rico. Obedece. Pode ser que vás para a cama com a Pátria. Obedece. Pode ser que o teu cadáver ainda venha a ser o estandarte glorioso do Partido. Nunca percas a esperança, explorado, jamais.
7
Abaixo a união livre. Viva a coexistência pacífica. O casamento do capital e do trabalho vai ser o grande casamento do século. Não haverá oposição dos pais nem da polícia. Sobretudo, tudo menos a erotização do proletariado. Felicidades, explorado.
8
Ouvi falar da luta de classes e da revolução e do mundo que o proletariado tem a ganhar e nada a perder. Ouvi falar das armas da crítica e da crítica pelas armas. Ouvi falar em transformar o mundo e mudar a vida. Ouvi falar de que enquanto um homem, um só que seja, e ainda que seja o último, existir desfigurado, não haverá figura humana sobre a terra. Nunca tinha ouvido uma sereia assim. Ouviste, explorado?
9
O diálogo? Que diálogo pode haver entre o condenado à morte e o carrasco que o conduz ao patíbulo? O diálogo é entre amantes, entre amigos, entre camaradas. Fora disso não há diálogo. Tens a palavra, explorado.
Lisboa, 25 de Maio de 1982.
*Excepto a UDP, apenas no que se refere à visita do papa. Citações evidentes de: Lenine, K. Marx, Manifesto Comunista, Rimbaud e Cesariny.
Entregue a Baptista-Bastos com a devida antecedência, exactamente no dia 27 de Maio, que me garantiu a sua publicação em O Ponto, as Teses não foram afinal incluídas naquele semanário, de 3 de Junho, por não haver página de Opinião, e não serão publicados futuramente por entretanto terem perdido actualidade, segundo informação do mesmo jornalista.
[Comp. e imp. na Tip. Freitas Brito, Ldª – Rua do Ferragial, 12 – 1200 Lisboa. Tiraram-se 500 exemplares para distribuição gratuita.]

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