17 de fevereiro de 2012

«É bom trabalhar nas Obras» (104)

«Várias vezes por ano, celebravam-se reuniões de todas as famílias e era então que conseguíamos medir os estragos que aquela década desatinada tinha causado em cada uma. A essas festas acorriam, por exemplo, crianças cujos pais viviam em trio ou noutras situações de poligamia e, em vez de se sentirem envergonhados, gabavam-se disso. Os nomes dos meus contemporâneos constituem outro vestígio eloquente dessa época. Alguns correspondiam às tendências ideológicas da família, como “Krouchevna”, “Lenine”, inclusive “Soviete Supremo”, a quem pusemos a alcunha “o Viet”. Outros, a crenças religiosas como “Uma” ou “Lini”, cujo nome completo honrava a serpente energética da Índia, e outros a cultos mais pessoais, como “Clítoris”. Era este o nome de uma menina bonita e inocente – filha de um escritor infrarrealista – que ainda não compreendia a ofensa que os seus pais lhe tinham feito e que, para infelicidade dela, não contava com nenhuma alcunha.»


[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito]

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