«Na praça de Ulm ergue-se a catedral, com a sua torre, a mais alta do mundo, e com a heterogeneidade da sua plurissecular construção, iniciada em 1377 e terminada – deixando de lado sucessivos restauros – em 1890. Entre os numerosos guias da catedral destaca-se o cuidadoso e pormenorizado texto de Ferdinand Thrän, que descreve e narra com minúcia, dos ornatos das colunas ao preço da venda de um par de calças oferecido por um devoto fiel, o moleiro Wammes, para os trabalhos da igreja (seis xelins e dois cêntimos). Além de autor do guia, Thrän era também um arquitecto goticizante e esteve quase a causar a ruína da catedral na sequência obstinada acerca de uma “lei” dos arcos, que julgava ter descoberto. Na capa da douta obrazinha (A Catedral de Ulm, Uma Descrição Exacta da mesma, 1857) o impressor, por uma distracção que parece obedecer à necessidade do destino de Ferdinand Thrän, esqueceu-se de escrever o nome deste último, que o bibliotecário da Biblioteca Nacional de Viena acrescentou a lápis, pelo menos no exemplar conservado no Palácio Albertina.
Esse esquecimento é um dos muitos agravos sofridos por Thrän, arquitecto e restaurador da catedral no século passado e hipocondríaco especialista em injúrias, como atesta o escrupuloso Caderno das Ofensas Recebidas que ele escreve durante anos e que jaz, inédito e ignorado, numa arca guardada numa arrecadação da catedral. Tenaz rogador de pragas e persistente alvo de contínuas injustiças, Thrän parece sublinhar, com uma complacência azeda, que a vida é despeito e afronta, pelo que não lhe resta senão manter um inventário rigoroso das respectivas prepotências. Se a escrita autêntica nasce do desejo de dar conta e razão do prolixo impasse de viver, Thrän é um autêntico escritor.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;
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