«Em Passau, o viajante sente que o correr do rio é desejo do mar, nostalgia da felicidade marinha. Esse sentido de plenitude vital, essa dádiva das endorfinas e da pressão sanguínea ou de algum ácido benevolente segregado pelo cérebro, tê-lo-ei sentido deveras nas ruelas e margens de Passau, ou terei julgado experimentá-lo apenas porque agora os procuro descrever a uma mesinha do Café San Marc? Provavelmente no papel finge-se, inventa-se a felicidade. A escrita talvez não possa dar verdadeiramente voz à desolação absoluta, ao nada da vida, a esses momentos na qual ela é só vazio, privação, horror. Já o simples facto de escrever enche de certo modo o vazio, dá-lhe forma, torna comunicável o horror e portanto, ainda que em escassa medida, triunfa sobre tudo isso. Existem altíssimas páginas de tragédias, mas para quem morre ou quer morrer, no instante em que morre ou quer morrer, até essas altíssimas páginas de dor soariam demasiado gloriosas, timoratamente aquém da dor do momento.
A privação absoluta não pode falar; a literatura fala dela e de certo modo exorciza-a, vence-a, transforma-a noutra coisa, converte a sua irredutível e inaproximável alteridade em moeda corrente. O viajante incerto, que na viagem não sabe que peixes pescar, ao reler os seus próprios apontamentos descobre-se, com certa surpresa, um pouco mais alegre e sereno e sobretudo mais decidido e resoluto do que, enquanto vivia e se deslocava, pensou; descobre ter apresentado claras e nítidas respostas às interrogações que o assaltavam, na esperança de poder, um dia, acreditar igualmente nessas respostas.
Entramos assim na tranquilização da literatura. Nela tudo se torna mais amável, serenizante como as portas e as praças de Passau.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010;
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