«A relação é uma epístola incisiva, cuja precisão científica se combina com a elegância humanística e se contamina de melancolia; nela se reconhece não só o autor dos estudos sobre abalos e deslocações de massa, marcos miliários da sedimentologia, mas também o mais distante e esquivo autor de textos menos conhecidos, como Elogio da Distracção, e de escrupulosas e inquietantes traduções de poemas românticos alemães.
Compreende-se, pela relação, que deve ter sido num primeiro momento a pousada a atraí-lo, essa Gasthaus com o telhado íngreme, revestida de madeira, que se encontra perto da fonte do Breg. Há muitos hotéis na sua relação, que é a narrativa verdadeira de uma expedição, como a dos exploradores em busca das nascentes do Nilo, e regista assim as etapas e fases do caminho; locandas com anões de pedra no jardim, raparigas, velhas pianolas, escadas de madeira conduzindo aos desvãos do telhado. Entre as linhas da relação, escrita por um homem sob outros aspectos tão amável e tranquilizador, existe uma dissimulada tentativa de fuga, o andamento vicioso de alguém que parece procurar um esconderijo, um lugar onde desaparecer e passar a não ser ninguém. As estalagens são sítios acolhedores de conversa e bebida, mas nos recantos um pouco mais escuros da Stube ou nos quartos com o tecto inclinado o autor procura algo de diferente e antitético, a cabana da bruxa na floresta, descoberta nos livros de infância, e à qual ninguém pode jamais voltar. É como se, ao contrário de Tristram Shandy que temia nunca mais voltar a encontrar-se, ele quisesse perder-se e fornecer a si próprio indicações de engano.»
[Claudio Magris, Danúbio; trad. Miguel Serras Pereira, Quetzal, Março 2010]
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