«O meu companheiro de mesa – um colega bastante obscuro, que redigia as notícias policiais, ou políticas?, num dos vespertinos do lugar – prevenia-me de um perigo verdadeiramente assombroso que no prazo de poucas horas cairia sobre mim. Suspeito que por um instante perdi a consciência e tive a ilusão de flutuar no ar. Talvez me tenha assustado.
Não era para menos. Na minha qualidade de nosso enviado especial (um prestigiado talismã que me protegia contra todos os perigos, segundo percebi), eu tinha chegado na semana anterior, com a consabida missão de escrever uma série de artigos que dia a dia informassem o público portenho sobre aquelas festas do centenário da independência, filhas inequívocas da grosseira vontade de maravilhar o mundo. O país tinha-se vertido para a capital, juntamente com os seus desfiles e demais pompas do Governo, as suas conjecturas e sem dúvida fantásticas reservas de folclore, de superstição e de taumaturgia: o sonho pitoresco, o pesadelo vivo, que desde quem sabe quando dorme a selvática montanha, enquanto na quase urbana periferia um capataz vigia com olhos espevitados.
Tinha-se escapulido. Tentei dominar os nervos, pois não me restava outra alternativa a não ser enfrentar a situação; como quem diz, enfrentá-la sozinho. Comparei o meu estado de ânimo com o de um suicida que tivesse engolido um veneno cujo efeito letal haveria de acontecer horas depois. Dei razão a Orduño; essa penosa detenção que me ameaçava na volta equivaleria a despertar por fim de uma vida a fazer-me de engraçado com letra impressa.»
[Adolfo Bioy Casares, O herói das mulheres; trad. David Machado, Cavalo de Ferro, Maio 2008]
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