1 de maio de 2010

«É bom trabalhar nas obras» (6)

«O problema de Helga Pato com as pessoas consistia em confundir os narradores com os autores e, por vezes, estes com os personagens. No seu caso não se pode dizer que se tratasse de uma leitora inocente ou desprevenida, bem pelo contrário; quando conheceu W na Feira do Livro de Frankfurt já era uma estudante veterana de doutoramento, prestes a terminar uma polémica refutação da autoria colectiva na épica medieval. Era suposto, que uma leitora tão curtida como ela devesse estabelecer mecanicamente e sem dificuldade uma diferença básica. E, no entanto, não foi capaz; colou-se. Quando se deu o caso de Frankfurt, W já era um célebre escritor muito lido pela esquerda. Helga Pato admirava-o e aproximou-se do seu stand para lhe pedir um autógrafo. Ele apercebeu-se imediatamente de umas virilhas poderosas, e em vez da dedicatória escreveu uma direcção. Ela acreditou que nesse momento começava um romance de amor sobre uma rapariga que decidia anular uma bolsa de pós-graduação e abandonar a refutação da autoria colectiva da épica medieval para ir viver com o seu autor favorito no último andar de um arranha-céus no centro de Madrid. Ela tinha vinte e nove anos e ele cinquenta e dois. Ela acreditou que se casava com o seu autor favorito, mas na realidade tinha-se apaixonado pelo narrador, e casou-se com um personagem. Durante o primeiro ano correu tudo sobre rodas. W não escreveu uma linha e Helga não leu uma palavra. Comiam, fodiam, umas vezes bebiam água e outras vezes bebiam whisky. Fizeram planos no alto da torre, e foi ele quem a certa altura lhe propôs que se convertesse em sua agente literária, que o representasse. A ela pareceu-lhe uma ideia excelente, e foi assim que fundou Imagem e Representação, a que seria a sua agência. Depois começaram a chegar manuscritos que ela lia com profissionalismo, de uma ponta à outra, consumindo horas de sono a escolher entre os melhores, que quase nunca eram os mais rentáveis, mas que o editor do seu marido publicava resignadamente com medo de perder os direitos de W. Helga viveu aquele primeiro ano nas nuvens, no alto do arranha-céus; era feliz, de acordo com a definição de felicidade dada por quase todos os manuais de auto-ajuda e os livros de poesia. E como não há felicidade que dure a vida inteira, a deles começou a dar para o torto no ano seguinte.»
[Antonio Orejudo Utrilla, Vantagens em Viajar de Comboio; em tradução para Edições 70]

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