«Uma das vezes em que me distraí, vi através das persianas pombas a mexerem-se em cima de uma estátua. Depois vi no fundo da sala, uma mulher jovem que tinha apoiado a cabeça contra a parede; a sua cabeleira ondulada estava muito espalhada e eu passava os olhos por ela como se visse uma planta que tivesse crescido contra a parede de uma casa abandonada. A mim dava-me preguiça ter de compreender de novo o conto e transmitir o seu significado; mas as palavras sozinhas e o costume de dizê-las produziam efeito sem que eu interviesse e surpreendia-me o riso dos ouvintes. Eu tinha voltado a passar os olhos pela cabeça que estava encostada à parede e pensei que talvez a mulher se tivesse dado conta; então, para não ser indiscreto, olhei para a estátua. Se bem que continuasse a ler, pensava na inocência com que a estátua tinha de representar um personagem que ela mesma não compreenderia. Talvez ela se entendesse melhor com as pombas: parecia consentir que elas dessem voltas sobre a sua cabeça e se pousassem no cilindro que o personagem tinha encostado ao corpo. De repente deparei-me que tinha voltado a olhar para a cabeça que estava encostada contra a parede e que nesse instante ela tinha fechado os olhos. Depois fiz o esforço de recordar o entusiasmo que senti as primeiras vezes que li aquele conto; nele havia uma mulher que ia todos os dias a uma ponte com a esperança de poder suicidar-se. Mas todos os dias surgiam obstáculos. Os meus ouvintes riram-se, quando uma dessas noites alguém lhe fez uma proposta e a mulher, assustada, fugiu a correr para casa.
A mulher da parede também se ria e voltava a cabeça na parede como se estivesse recostada numa almofada. Eu ia-me habituando a tirar a vista daquela cabeça e a pô-la na estátua. Quis pensar no personagem que a estátua representava; mas não me ocorria nada sério; talvez a alma do personagem também tivesse perdido a seriedade que teve em vida e agora andaria a brincar com as pombas. Surpreendi-me quando algumas das minhas palavras voltaram a causar graça; olhei para as viúvas e vi que alguém se tinha assomado aos olhos da que parecia mais triste. Numa das oportunidades em que tirei a vista da cabeça encostada à parede, não olhei para a estátua mas para outra divisão onde julguei ver chamas em cima de uma mesa; algumas pessoas seguiram o meu movimento; mas em cima da mesa só havia uma jarra de flores vermelhas e amarelas sobre as quais dava um pouco de sol»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro;
ilustração caída redonda que nem um e-mail eviado por Rui M. S. Lourenço]
2 comentários:
Promete... :-)
A ilustração foi feita por mim sentado no chão da Crawford Gallery em Cork, na República da Irlanda em 98, em lápis afiado só uma vez e sem borracha. Andava a ver se fazia uma candidatura a estudante da escola de arte na cidade. Mais tarde acrescentei no computador filtros no pedestal e no fundo.
A estátua chama-se Laocoon, ao que parece existe uma segunda versão da mesma estátua deste mito grego mas falta parte do braço direito da figura do pai Lacão.
Rui
Enviar um comentário