11 de maio de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (9)

«E enquanto nos ríamos ela disse-me que desejava fazer-me uma pergunta e fomos para a divisão onde estava a jarra com flores. Ela recostou-se na mesa até fundir a madeira no corpo; e enquanto metia as mãos por entre o cabelo, perguntou-me:
- Diga-me a verdade: por que é que se suicidou a mulher da sua história?
- Oh, teria de lhe perguntar a ela.
- E o senhor, não o poderia fazer?
- Seria tão impossível como perguntar algo à imagem de um sonho.
Ela sorriu e baixou os olhos. Então pude olhar-lhe a boca toda, que era muito grande. O movimento dos lábios, esticando-se para os lados, parecia que nunca mais iria terminar; mas os meus olhos percorriam com gosto toda aquela distância de vermelho húmido. Talvez ela visse através das pálpebras; ou pensasse que naquele silêncio eu não estivesse a fazer nada de bom, porque baixou muito a cabeça e escondeu a cara. Agora mostrava a massa toda do cabelo; num remoinho das ondas via-se-lhe um pouco da pele, e eu recordei uma galinha a quem o vento tivesse revolvido as penas e se lhe visse a carne. Eu sentia prazer em imaginar que aquela cabeça era uma galinha humana, grande e quente; o seu calor seria muito delicado e o cabelo era uma maneira muito fina das penas.
Veio uma das tias – a que não tinha os olhos fumados – trazer-nos calicezinhos de licor. A sobrinha levantou a cabeça e a tia disse-lhe:
- É preciso ter cuidado com este; olha que tem olhos de raposo.
Voltei a pensar na galinha e respondi-lhe:
- Senhora! Não estamos num galinheiro!
Quando voltámos a ficar sós e enquanto eu provava o licor – era demasiado doce e dava-me náuseas –, ela perguntou-me:
- O senhor nunca teve curiosidade pelo porvir?
Tinha encolhido a boca como se a quisesse guardar dentro do calicezinho.
- Não, tenho mais curiosidade em saber o que se passa neste mesmo instante com outra pessoa; ou em saber o que eu agora faria se estivesse noutro sítio.
- Diga-me, o que faria o senhor agora se não estivesse aqui?
- Casualmente, sei: despejaria este licor na jarra das flores.
Pediram-me que tocasse piano. Ao voltar à sala, a viúva dos olhos fumados estava com a cabeça baixa e recebia no ouvido o que a irmã lhe dizia com insistência. O piano era pequeno, velho e desafinado. Eu não sabia o que tocar; mas assim que comecei a experimentá-lo, a viúva dos olhos fumados soltou o pranto e todos nos calámos. A irmã e a sobrinha levaram-na para dentro e, pouco depois, veio a sobrinha e disse-nos que a sua tia não queria ouvir música desde a morte do seu esposo – tinham-se amado até chegar à inocência –.
Os convidados começaram a ir-se embora. E os que ficámos falavam em voz cada vez mais baixa à medida que a luz se ia. Ninguém acendia as lâmpadas.
Ia eu entre os últimos, a tropeçar nos móveis, quando a sobrinha me deteve:
- Tenho de lhe pedir um favor.
Mas não me disse nada: encostou a cabeça na parede do saguão e pegou-me na manga do casaco.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos, em tradução para a Colecção Ovelha Negra, Oficina do Livro]

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