4 de maio de 2010

À mão de ler (14)

«Tenho cada vez mais a impressão de que o mundo se vai progressivamente despovoando, apesar do bulício dos carros e da roda-viva da multidão. É tão difícil agora encontrar uma pessoa! Na rua só nos cruzamos com silhuetas, com figuras, com símbolos. Um taxista, por exemplo, não é um indivíduo, mas um modelo social: resmungão, azedo, insolente, antes de entrarmos no seu carro já sabemos do que vai falar, que estratagemas irá inventar para tornar a corrida mais sinuosa e rentável. Uma vendedora de shopping é igual à vendedora de todos os shoppings: indiferente, desdenhosa, mal-educada, com ares de grande senhora caída ali por acidente. E a adolescente de blue-jeans que nos aborda na rua não é o anjo pessoal com que sonhávamos desde a nossa infância, mas a cópia tirada de milhares de exemplares da crava que tanto aqui, como em Londres, São Francisco ou Hamburgo, detém o transeunte para lhe pedir a moeda destinada ao arquétipo barbudo que a espera ao voltar da esquina a enrolar um charro. Compreendo as causas desta degradação da personalidade nas urbes demenciais, apenas verifico agora os seus efeitos. Mas é doloroso que tenhamos de viver entre fantasmas, procurar inutilmente um sorriso, um convite, uma proximidade, um gesto de generosidade ou de desinteresse, que nos vejamos forçados, definitivamente, a caminhar, cercados pela multidão, no deserto.»
[Julio Ramón Ribeyro, Prosas apátridas, Seix Barral, Barcelona 2007]