10 de maio de 2010

À mão de ler (17)

«A procissão avançou em silêncio; só se ouvia o chiar das rodas e as pisadas surdas dos animais. Mais adiante, quando o circo já se perdia atrás de uma lomba, escutaram-se as trombetas da Orquestra Festival, outra vez com a Marcha de Zacatecas. A Natanael pareceu-lhe que uma marcha era demasiado festiva para uma despedida e pensou num tango.
– Lentas, tristes, torpes, muito contrariadas, partem as carretas da caravana…
E Hércules rematou, desafinado:
– Nada mais triste do que a tristeza deixada pelo circo quando parte.
Barbarela fechou-se em si mesma; passava da raiva para a desolação como o vaivém de um pêndulo. Apertou os punhos, virou-os para cima e disse quase sem alento:
– Pensei que poderia ganhar-te, pelo menos uma vez.
Pôs-se a caminhar, muito lentamente, pela mesma rota por onde partiu o Grande Circo Irmãos Mantecón.
– Pelo menos ficou a conhecer a história toda dos meus antepassados.
Hércules e Natanael observaram-na com um pouco de pena, sabendo bem que o circo lhe levava demasiada vantagem, mas não procuraram alcançá-la nem dissuadi-la. Bastou-lhes cruzar os braços.
– A puta e o cura – disse Hércules –, bonita aldeia.
Sem fazer ideia do que fazer ou que dizer, Natanael deu-lhe um abraço, e deu-se imediatamente conta de que a diferença de estaturas dava algo perverso àquela manifestação de irmandade. Hércules apontou para o relógio da igreja; viu o ponteiro órfão, o mostrador manchado de ferrugem.
– É a mesma hora de quando chegámos – disse –. A mesma hora de sempre.
Deixou cair a sua sanita e ouviu-a quebrar-se. Já não se importou.
Natanael sentiu compaixão por aquela imensa massa de carnes, tão poderosa e tão desamparada. Pegou na mão do homem forte, da puta, da morsa.
– Vem comigo.
Hércules deixou-se conduzir, indiferente. Avançaram para a igreja, sem sino, sem cruzes, sem fé, sem esperança, sem nada; e subiram as escadas do átrio. Antes de entrar, deram meia volta. Santa Maria do Circo brilhava como um cenário de uma guerra perdida. Timoteo de Roncesvalles ou José María Bocanegra era o símbolo da devastação, meio submerso numa água suja e babadas de animais e sangrenta de marrano; a casa queimada do um, dois, três, então destruída e agora destruída; o mosquedo a rondar a casa de Mágala, apoderando-se do lugar; uma cova inútil de churrasco, uma língua atirada para qualquer lado, uma grelha com cinzas que já não cozinharam nada; a sanita de porcelana, quebrada, inútil, tombada de lado, como podre fruto proibido mordido. Pela rua avançava um fio de pó, empurrado pelo vento, e pouco a pouco ia cobrindo as marcas do circo, da vida que se foi por esse caminho rumo sabe-se lá aonde com a solenidade de um cortejo fúnebre. O anão apertou a mão porque sentiu que Hércules lha soltava, e puxou-o para o acesso da igreja, um focinho negro a regurgitar a desolação dos bancos vazios, do confessionário sem pecados e de um altar como mesa de sacrifícios.
– Onde me levas? – perguntou Hércules, receoso do momento e ainda mais do futuro.
Mas, finalmente, deixou-se levar por aquela mão pequena de mulher gorda que o conduzia para dentro.
– Anda, putita – ordenou o anão enquanto fechava o portão, enquanto fechava aquele focinho faminto para os engolir para sempre na sua escuridão de sepulcro –. Anda, putita – repetiu –, vamos para o diabo.»
[David Toscana, Santa Maria do Circo, Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro, Abril 2010;
gravura: A prostituta e o gigante sentados sobre o monstro de dez chifres e sete cabeças (que antes era o carro), que representa a Igreja. (Canto XXXII). Ilustração de Gustave Doré (século XIX).]

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