«Vi Katsimbalis aproximar-se com um grande floreado de bengala. Trazia um amigo a reboque – chamar-lhe-ei Kyrios Ypsilon, para ser discreto. Descobri que Kyrios Ypsilon era um exilado político e tinha sido transferido para Spetsai, de qualquer outra ilha, por causa da sua saúde fraca. Gostei imediatamente dele, no momento em que lhe apertei a mão. Falava francês, por não saber nada de inglês, mas com sotaque alemão. Era tão grego quanto um grego pode ser, mas tinha sido educado na Alemanha. O que me agradou nele foi a sua natureza viva e entusiástica, a sua franqueza, a sua paixão por flores e metafísica. Acompanhou-nos ao seu quarto numa grande casa deserta, a mesma onde a famosa Bobolina tinha sido morta a tiro. Enquanto conversávamos, foi buscar uma banheira de folha e encheu-a de água quente para tomar banho. Numa prateleira perto da cama tinha uma série de livros. Dei uma vista de olhos aos títulos, que se apresentavam em cinco ou seis línguas. Encontravam-se ali A Divina Comédia, Fausto, Tom Jones, diversos volumes de Aristóteles, The Plumed Serpent, os Diálogos de Platão, dois ou três volumes de Shakespeare, etc. Uma excelente dieta para um cerco prolongado. “Sabe, então, um pouco de inglês?”, perguntei. Oh, sim, tinha-o estudado na Alemanha, mas não o sabia falar muito bem. “Gostaria de ler Walt Whitman, um dia”, acrescentou muito depressa. Estava sentado na banheira, a ensaboar-se e a esfregar-se vigorosamente. “É para manter o moral”, disse, embora nenhum de nós tivesse feito qualquer comentário a respeito do banho. “Precisamos de ter hábitos regulares”, continuou, “pois de contrário desmoronamo-nos. Ando muito, para conseguir dormir à noite. As noites são compridas, sabem, quando não somos livres.”
– É um tipo formidável – disse Katsimbalis, quando regressávamos a pé ao hotel. – As mulheres são loucas por ele. Tem uma teoria interessante acerca do amor… arranje maneira de ele lhe falar a esse respeito, em qualquer ocasião.
Falar de amor trouxe o nome de Bobolina à conversa.
– Por que será que não ouvimos falar mais de Bobolina? – perguntei. – Ela parece outra Joana d’Arc.
– Hmm – resmungou, parando repentinamente. – Que sabe você de Joana d’Arc? Sabe alguma coisa a respeito da sua vida amorosa?
Ignorou a minha resposta e continuou a falar de Bobolina. Contou-me uma história maravilhosa, e não duvido que verdadeira, na sua maior parte.
– Por que não escreve essa história pessoalmente? – perguntei-lhe de chofre. Alegou que não era escritor, que a sua missão era descobrir pessoas e apresentá-las ao mundo. – Mas eu nunca conheci nenhum homem capaz de contar uma história como você – insisti. – Por que não tenta contar as suas histórias em voz alta, deixar alguém anotá-las enquanto as conta? Não é capaz de fazer isso, pelo menos?
– Para contar uma boa história – respondeu – é preciso ter um bom ouvinte. Não sou capaz de contar uma história a um autómato que escreve em estenografia. Além disso, as melhores histórias são aquelas que não queremos preservar. Se temos algum arrière-pensée, a história está perdida. Tem de ser uma dádiva pura… temos de atirá-las aos cães… Eu não sou escritor – explicou –, sou um tipo improvisador. Gosto de me ouvir a mim próprio falar. Falo demasiado: é um vício. – E depois acrescentou, pensativamente: – Para que serviria ser escritor, um escritor grego? Ninguém lê grego. Aqui, se um homem consegue ter mil leitores, está cheio de sorte. Os gregos instruídos não lêem os seus próprios escritores, preferem ler livros alemães, ingleses, franceses. Um escritor não tem hipótese nenhuma na Grécia.
– Mas a sua obra podia ser traduzida para outras línguas – sugeri.
– Não há nenhuma língua que possa transmitir o sabor e a beleza do grego moderno – respondeu-me. – O francês é rígido, inflexível, eivado de lógica, demasiado preciso; o inglês é demasiado monótono, demasiado prosaico… vocês não sabem fazer verbos em inglês. – Continuou a brandir irritadamente a bengala. Começou a recitar um dos poemas de Seferíades, em grego. – Ouviu? O simples som é maravilhoso, não acha? O que é que me pode dar em inglês capaz de lhe equivaler em pura beleza de ressonância? – E, de súbito, entoou um versículo da Bíblia. – Isto está mais em conformidade – declarou. – Mas vocês já não usam esta linguagem, agora é uma língua morta. A língua, hoje, não tem entranhas. Vocês estão todos castrados, tornaram-se homens de negócios, engenheiros, técnicos. Soa a dinheiro de madeira a cair num esgoto. Nós temos uma língua… ainda estamos a fazê-la. É uma língua para poetas, não para lojistas. Escute isto…»
[Henry Miller, O Colosso de Maroussi; trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Livros do Brasil, Lisboa 1996]
1 comentário:
O Colosso de Marússia, um dos melhores livros ue já li!
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