31 de maio de 2010

À mão de ler (33)

«Fui profeta da sabedoria e da verdade. Possuía as chaves da cidade. Senhor dos mares e dos pescadores. Hoje sou um cemitério de terracota. O mais belo cemitério onde vem desenvolver-se a loucura, onde dormem homens loucos de bondade, doentes por amor, doentes de razão.
Tive de me enrolar
com minhas muralhas numa bruma de Verão
sudário vermelho ou branco
para nunca acolher
camelos cegos
nascidos
de um estranho naufrágio
para recordar
minha origem vagabunda
eu sou a inércia criminosa e o exílio dos cães
tenho a amizade dos gatos e dos pobres
todas as minhas esposas me foram infiéis
soçobraram numa insacável loucura
das imagens e não das almas
eles dizem que estou doido
mas o que estou é sozinho
um pouco triste
escutai-me
vou contar-vos tudo...
eu tinha-lhe dado uma cabra...
não
não estou doido
se me deres um cigarro eu continuo a história...»
[Tahar Ben Jelloun, Arzila - Estações de Espuma; tradução de Al Berto e ilustrações de Luís Manuel Gaspar, Hiena Editora, Maio 1987]

3 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Muito belo, este quase desespero

fallorca disse...

Que o levou a décadas de exílio

sonia disse...

há tantas almas que sofrem...mas apenas algumas são poetas e nos passam sua agonia vestida de gala para que possamos deixá-la entrar em nossos corações!