Traído pelo microclima de Carnaxide e a localização da casa, abordei a cidade pendurado num estúpido casaco que passou a maior parte do tempo pelos ombros, à falta das costas da cadeira à mão; adormeceu no Miradouro de São Pedro de Alcântara, a saborear um capilé com uma amiga. Travo demasiado doce para o meu gosto; prefiro-o, ao travo, naturalmente mais ácido e citrino. O ridículo teve início ao cimo do Parque, esquiava até ao stand da frenesi, com o tabaco num bolso interior e a lata no outro e o moleskine falso num bolso exterior e o telemóvel no outro e as chaves a atravancarem-me a comodidade dos chinos; senti-me um vendedor clandestino. Labrego, repreendi-me até encontrar nos claustros subterrâneos do Marquês uma bonita figura feminina, leve, com um livro ciosamente encostado ao peito. Disse-me um adivinho..., sussurrei-lhe a uma distância discreta, com um sorriso recebido com surpresa retribuída: «É delicioso», parecendo-me natural que saísse na estação certa, a do Campo Pequeno. Vi outra utilizadora do metro retirar um objecto semelhante a um livro do caos feminino portátil; aguardava a correspondência para a Frutalmeidas, fechada, adiado o jantar para as favas que me esperavam no Rato.
Escolhi os Diários de Torga possíveis, que despertaram a curiosidade de uma senhora enquanto liquidava os caprichos do neto. Bati, sem impaciência, com as lombadas na caixa registadora e as capas bem visíveis para que pudesse estabelecer o diálogo: «Nunca se sabe se perdemos por não falar ou falar demais», retribuí-lhe a cumplicidade aforista levando o boné (parolo) esquecido pelo neto em cima do balcão. Enquanto o maralhal aguardava o «combate, poeticamente correcto», entre Miguel Manso e Nuno Moura, no ginásio da Trama, ofereceram-me duas sebentas e três blocos, envolvidos numa sobrecapa da Livraria Portugália – 75 rua do Carmo, Lisboa (ainda à francesa, como a Casa Pereira) – com um lápis azul entalado no cordão; não me faltam motivos para me considerar um gajo apetecivelmente feliz. A meio da subida do Monsanto não me contive e chamei a atenção do taxista para o naco de lua a escorrer sobre o asfalto, tratou-a por fatia de queijo amanteigado; apostava que também é das beiras, conduzia em mangas de camisa. Quando me apanhei em casa abri cuidadosamente a oferta, com alegria escolar; mas depois, cauterizada a pústula autocolante que desvaloriza o Autor, à medida que abria com a navalha os cadernos do Diário V, 3.ª edição revista em 1974, verifiquei que Torga passa como cão por vinha vindimada pelo mês de Junho de 1949. Secretamente desapontado, estreio um bloco anotando: «Coimbra, 4 de Julho – Fazer uma literatura o mais perto possível da clandestinidade, mas publicável, é a única esperança de salvação que resta ao artista.» (Miguel Torga)
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