28 de setembro de 2012

Papiro do dia (263)

«A distância entre aquelas sandálias, que ao fim da manhã estariam prontas, novas, de couro cru, rude, e as que o próprio Ketia-Ketia calçava então, moídas pelo tempo e pelos seus andares, eis o que me interpelava. O objecto impregnado pela relação do uso. É à volta disso que há-de residir toda a carga que empresta tamanho valor àquelas peças, de uso quotidiano, imediatamente perecíveis nestas sociedades, quando são introduzidas nos circuitos da arte e o mercado internacional depois preserva e valoriza como tesouros. Uma cabaça para bater o leite, aqui, nova ainda mas aparelhada já para prover à sua função, e até adornada, tem já inscrito nela todo o investimento criativo que compete a uma obra de arte. Mas só o uso útil que se lhe vai extrair há-de conferir-lhe estatuto de coisa com valor plenamente simbólico. E, ainda assim, ninguém irá poupá-la ao uso, seria negá-la a ela e ao seu valor real, até que um dia quebre e o tempo normal a extinga depois. Qualquer coisa assim para relacionar com muita outra matéria e associar às modalidades e à moda do efémero nas artes modernas. Delírios…»
[Ruy Duarte de Carvalho, Os papéis do inglês; Cotovia, 2000;
claro...]

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