7 de agosto de 2012

Papiro do dia (247)

«Em dias bonitos de Outono, quando se vem da Rua Eadetzky, pode ver-se, ao lado do teatro municipal, um grupo de árvores ao sol. A primeira árvore, defronte daquelas cerejeiras avermelhado escuro que não dão frutos, está tão inflamada de Outono, é uma mancha tão desmesuradamente dourada, que parece um archote deixado cair por um anjo. E agora ela arde, e o vento do Outono e o gelo não a podem fazer extinguir-se.
Quem vai querer, pois, falar-me do cair das folhas e da morte branca diante desta árvore, quem vai querer impedir-me de a contemplar e de crer que ela me iluminará sempre como nesta hora e que escapará à lei universal?
À sua luz também a cidade se torna agora de novo reconhecível, com pálidas casas sob telhados escuros, e o canal que, de quando em quando, traz consigo do lago um barquinho que aporta ao seu coração. O porto está morto, desde que as cargas são trazidas mais rapidamente para a cidade em comboios e camiões, mas do alto cais caem ainda flores e frutos que ficam a boiar na água enlodaçada, a neve precipita-se dos ramos, a água do orvalho corre, rumorejante, por ali abaixo e então ele cresce novamente e com gosto e levanta uma onda e com a onda um barco, cuja vela colorida fora içada à nossa chegada.
Dificilmente as pessoas poderiam ser atraídas de outra para esta cidade, porque eram muito poucos os seus atractivos; vinham das aldeias, porque as quintas se tinham tornado demasiado pequenas e procuravam alojamento nos subúrbios da cidade, onde ele era mais barato. Lá estavam ainda campos e pedreiras de cascalho, as grandes hortas e os terrenos de construção, onde tinham sido cultivados, anos a fio, nabos, couves e feijão, o pão dos moradores mais miseráveis. Tinham sido eles a cavar as suas próprias caves, em terras com águas subterrâneas. Tinham construído eles próprios os seus telhados, nos curtos serões entre a Primavera e o Outono, e sabe Deus se tinham tido tempo de chegar a ver um alboroque antes de morrerem.
Aos seus filhos isso nem sequer interessava, pois já tinham sido iniciados nos odores inconstantes trazidos de longe, quando as batatas assavam nas fogueiras e os ciganos, com a sua estranha língua, se instalavam por períodos fugazes na terra de ninguém, entre o cemitério e o aeroporto.»
[Ingeborg Bachmann, Trinta Anos; trad. Leonor Sá, Relógio d’Água, 1988;

Sem comentários: