10 de agosto de 2012

Papiro do dia (248)

«As crianças começam a usar palavras novas. Já não soletram. Lêem jornais, dos quais emerge a imagem do tarado sexual assassino. Este transforma-se na sombra projectada pelas árvores, quando se volta para casa depois da catequese, e provoca o rumor dos lilases que se balançam ao longo dos jardins fronteiros às casas; os viburnos e o flox separam-se e por uns momentos deixam entrever a sua silhueta. Sentem as garras do estrangulador, o mistério que se esconde na palavra sexual e que ainda é mais de temer do que o assassino.
As crianças lêem até ficarem de olhos esgotados pelo cansaço. Têm enormes olheiras por terem estado à noite até muito tarde no Curdistão selvagem ou junto dos pesquisadores de ouro no Alasca. Põem-se à escuta de um diálogo amoroso e desejam possuir um dicionário para aquela linguagem incompreensível. Dão voltas à cabeça para compreenderem os seus corpos e uma discussão nocturna no quarto dos pais. Riem por tudo e por nada, não se conseguem conter, caem da cadeira de tanto rir, levantam-se e continuam a rir até ficarem com cãibras.
O assassino, porém, cedo é encontrado numa aldeia, em Rosental, numa granja, com fiados de palha e a tarja cinzenta no rosto, que o tornará irreconhecível para sempre e não só no jornal da manhã.»
[Ingeborg Bachmann, Trinta Anos; trad. Leonor Sá, Relógio d’Água, 1988;
as crianças]

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