«E aos poucos, quanto mais eu lia, quanto mais maravilhosa e estranha me tocava a visão sobre os telhados, as ruas e o dia a dia, tanto mais frequentemente surgia em mim, hesitante e opressiva, a sensação de que também eu seria, talvez, um vidente; e o mundo que diante de mim se estendia, aguardava que eu elevasse parte dos seus tesouros, os libertasse do véu do acaso e da mediocridade, e que o assim descoberto, pela força da poesia, o viesse arrancar à destruição, eternizando-o.
Timidamente, comecei a fazer alguma poesia e, aos poucos, fui enchendo alguns cadernos com versos, com projectos e pequenos contos. Eles perderam-se, e provavelmente teriam pouco valor, mas proporcionaram-me grande e sincera excitação e um secreto prazer. Só aos poucos a crítica e a autocrítica se seguiram a estes ensaios, e apenas no último ano escolar surgiu a primeira e indispensável grande desilusão. Eu começara a pôr de lado os meus poemas de principiante e a olhar os meus escritos em geral com desconfiança quando, por acaso, me caíram nas mãos alguns volumes de Gottfried Keller, que eu logo li duas e três vezes seguidas. Vi então, numa percepção súbita, quanto os meus sonhos imaturos estavam longe da autêntica, crua e verdadeira arte, queimei os meus poemas e novelas e olhei sóbria e tristemente o mundo, com o doloroso sentimento de ser um miserável.»
[Hermann Hesse, Peter Camenzind; trad. Isabel de Almeida e Sousa (a preço silly pelo “DN”);
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